segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O 5 S

A mudança das condições de trabalho leva à mudança dos modelos administrativos Maurício Tragtenberg

A PALESTRA SOBRE 5 S

Fui um jovem em 1996, mas já não me sentia em 1999, no meu último dentro da primeira fábrica que trabalhei como operador de produção. Antes eu me consideraria livre em qualquer lugar onde estivesse, simplesmente porque, mesmo que prendessem meu corpo ou o destruíssem, minha mente poderia se libertar para pensar um outro lugar possível negando minha limitação e desafiando a hierarquia. Mais tarde soube o quanto estava enganado.


Como plano alternativo, eu pensava que conseguiria sair do trabalho e me liberar de suas amarras no fim do expediente, o que igualmente era um equívoco pois o processo de trabalho restringe a mente do trabalhador e obriga a organizar o tempo que seria fora. Essa era uma das principais funções das dinâmicas de gestão organizacional da empresa, entre os quais, o 5 S.


Eu participava de uma palestra sobre gestão do trabalho, destas chateações que sempre acompanham as empresas multi-nacionais, mas aquela era diferente, pois não era só para mim, o novato, mas todos os funcionários fariam aquele treinamento que findaria em dinâmicas de grupo. É claro que para mim era interessante pois, não só poderia matar parte do expediente no treinamento no setor ao qual seria direcionado, o tratamento de efluentes agudamete tóxicos (ou esgoto industrial para os íntimos), como também aquela seção de lenga-lenga reuniria vários dos funcionários que eu passaria a conhecer.


Era difícil conhecer todo mundo de cara, primeiro pelo tamanho da fábrica, uma indústria química de grande porte, segundo, porque cada setor era de um processo distinto, que por sua vez era de um ramo de negócios que pertencia a um país diferente. A empresa se dividia fisicamente entre as partes em que era dividida a propriedade de seus títulos pelas ações, ou seja, era uma empresa com controladores, mas cuja posse era partilhada entre acionistas.


Na época, para mim, isto era quase incompreensível, mas o meu setor deveria conhecer toda a empresa, pois fazíamos a água que gerava tanto o vapor que todos utilizavam quanto a água para combate a incêndios (então recorrentes) e também porque era para nós que viriam as “buxas”, os problemas de todos os setores enviados no ralo para o esgoto e, acreditem, eram muitos: produtos explosivos, corrosivos, tóxicos, etc, com que deveríamos lidar e para isso pensar e agir rápido em casos os mais diversos utilizando toda a química e física presente em nossas cabeças, assim como, na medida do possível, experiência e calma.


E estávamos nós lá falando de qualidade total e toda a empresa passava por este tipo de lenga-lenga e reciclagem. Porquê? Bem, eu não sabia, pois a empresa não tinha baixos níveis de produção, nem tinha concorrência, assim como praticamente tudo o que produzia era exportado, porquê se preocupavam? Aliás, nenhum país permitiu que a empresa fosse implantada em seu território, somente o Brasil, e nenhuma cidade quis se arriscar, senão aquela em que estava, logo, porquê aumentar mais ainda o lucro absurdo que possuíam? Só havia um sindicato patronal na cidade inteira, aliás, a coisa mais próxima da esquerda por ali era o sindicato dos bancários, da CUT, que nem dava bola para os químicos do lado B do inferno.


Todo o falatório dizia respeito ao aumento de produção possibilitado pela dita “qualidade total assegurada” e certificados ISO. Mas que diabos de qualidade era essa, que clientes eram esses, se só produzíamos produtos de base de outros produtos que nem sabíamos quais eram? A coisa continuava e continuava. Fiquei sabendo que o rapaz que falava e que devia ter minha idade hoje, uns trinta, tinha uma história ligada à empresa, ele tinha sido Ofice boy, depois fez administração e se tornou deste setor de “Qualidade”, um sonho de ascensão a ser mostrado aos demais empregados (mas um dos primeiros posteriormente a ser demitido) e sempre mostrado pelos chefes. No entanto, o office boy só conhecia o administrativo e nunca tinha conhecido o chão de fábrica.


Ele estava vivamente entusiasmado, parecia que um projeto de vida se juntou a um projeto produtivo. Mas num determinado momento me incomodei, não só com sua alegria, pois nós, os peões de fábrica, sempre ríamos zombando de algo ou de alguém, normalmente do administrativo, chefe, encarregado, uma piada machista, ou algo assim. Então ele abriu para perguntas e eu perguntei: “- O senhor está dizendo que o mal funcionamento de qualquer coisa que acontece na fábrica é sempre culpa do peão ? É o fato dele ser mal organizado e não assimilar esse tal “espírito da empresa” que ele compromete a produção ? Não é falta de equipamento e condições propícias, veja o meu setor por exemplo (...)”


E continuei como diz um amigo, jogando “areia no chantilly” dele, mas ele era muito simpático e de bom jogo de cintura. Pense bem no que ele passou para subir até ali. Ele não era como os outros malas antipáticos do administrativo, nem era nojento e nem se vestia bem. E aposto que ele não tinha plena ciência do que se passaria, apenas o sutil véu de ideologia no seu aspecto mais doce. Foi assim que ele nos apresentou cinco palavras japonesas que remetiam à formas de organização do local de trabalho num tipo de regra universal que teria funcionado como uma “cornucópia” no Japão permitindo maravilhas inauditas na produção e que seria aquilo que seria colocado em prática naquele local.


VISITAS AOS OUTROS SETORES

Passei a conhecer melhor meus colegas de trabalho e a “passear” nos turnos noturnos onde tudo era deserto e a fábrica ainda apresentava à noite certo encanto cyber-punk. Via a intimidade dos colegas e encontrava com ex-colegas de colégio técnico, como um amigo que tinha me dado aquela chance de emprego e que via o local cada vez com melhores olhos, isto é, passava do olhar do peão ao do técnico, enquanto eu ia no sentido contrário.

Era interessante notar como às vezes no meio da mais alta tecnologia a quantidade de variáveis dá margem à modelos ultra-caóticos e certa autonomia do trabalho intuitivo frente ao técnico. Semi-entendido, eu olhava a planta e ria, pois passava do interesse da química (que deixava de ser curiosidade científica para virar trabalho) para a física e pensava que fórmula calcularia a quantidade de variáveis que estão presentes no setor: válvulas semi-entupidas, condutores com defeitos, leitores com desajustes, etc, etc, quem, senão o peão no chão de fábrica, conseguiria ajustar a idéia do engenheiro ao que acontece de fato ?

O peão que cheira o tanque e nota que algo está errado, ou que um phmetro está levemente errado pela turbidez, o barulho do tubo que diria respeito à quantidade de vapor que passa ? Enfim, mesmo no meio daquele inferno, eu acreditava confiante que o homem ainda tinha controle sobre o técnico superior.

E quando o engenheiro vinha com um novo processo ? Aí o engenheiro novo vem, depois nada dá certo, então chega o velho peão, para pensar junto o que estava errado, ele mexe e pergunta ao velho: o que você fez exatamente ? E ele: eu apenas sei que quando este duto está chacoalhando (que a princípio é um defeito) é a hora de descarregar. Eu via certa ironia nisso.

O setor de alguém também era interessante. O lugar mais memorável era o de Peróxido Orgânico. Produto que à zero grau é altamente inflamável e que à temperatura ambiente explode (que está mais presente na nosa vida do que imaginamos, pois faz o acrílico de nossos óculos). Lá havia o seu Silva que não havia entendido nada do que era o 5 S, simplesmente achava que era para serem organizados, coisa que ele já era. Ele que era um dos mais assíduos, retos e produtivos trabalhadores e que fazia horas extras como ninguém.

O seu “canto” era um charme. Foto da filha, da mulher, quase um escritório de papai, como são os do administrativo com os manuais técnicos arrumados de um modo muito charmoso, não era a toa que as mulheres da limpeza, únicas obrigadas a se aventurar conosco nos cafundós perigosos da fábrica, se amarravam tanto nele. Era como se algo dele, de sua subjetividade, estivesse ali, apesar de tamanho sacrifício pessoal e tantas horas ali dentro.

Eu não tinha dessas, nunca me dei com minha família e eles só queriam a grana no final do mês. Conversava com meu único amigo lá, que era pai, e que podia lembrar e rir, sair, conhecer outras químicas e sair com o pessoal. Naquela altura, sem muitas perspectivas de entrar direto na faculdade, pois em três turnos que se revezavam, não dava pra pensar em faculdade, nem nos amigos de sempre, pois meus turnos muitas vezes faziam cair as folgas no meio da semana em pleno interior do estado, onde não há nada para fazer.

No afã de liberdade eu bebia e me entorpecia com outras químicas para tentar esquecer do perigo constante da fábrica e da tristeza daquele local. Progressivamente, mudei de amigos, mantendo alguns da fábrica e outros adictos malucos com quem passeava por aí. Amizades químicas que também se estragavam pela noite quando eu não estava na noite na fábrica. Eu sobrevivia de acidentes na fábrica para propositalmente cair neles fora e esquecer que eu voltaria para lá. Só por algumas noites.

A PROPOSTA

Uma vez o encarregado (encarregados nunca são boas pessoas e sempre remetem ao capitão do mato) me apareceu como um Mefistófeles industrial e me fez a proposta: “- Quer trabalhar em um horário fixo para poder fazer curso superior ?” Eu tinha 18 anos, mas tinha todos os motivos do mundo para imaginar que aquela cobra tinha algo de ruim para me ofecerer.

Era notório que eu estudava, pois qualquer instante livre eu utilizava para isso, como o horário de almoço. Além disso, este foi um motivo de um desentendimento certa vez, pois ele insistia em deixar meu setor com um único funcionário e quase fui punido justamente por fazer minha hora de almoço. Isto é, estando ausente eu era responsável pelo que acontecesse no meu setor, e almoçando, eu estava ausente.

A fábrica quer sempre te engajar totalmente e mobilizá-lo como um recurso totalmente à disposição. Como a matéria prima que se aprende a utilizar e reciclar sem desperdiçar nada. E é quase impossível dribá-la. Assim, era um pesadelo eles saberem meu telefone, pois como eu era solteiro, eu era sempre um alvo de horas extras, que eram praticamente exigidas. Eu ficava irado enquanto eles também ficavam irados, ficavam como que aturdidos com minha ira. Era como se quisessem te dobrar inteiro e se qualquer resitência subjetiva fosse notada, era combatida até encontrarem algo com que te dobrar. Este era o motivo daquele mefistófeles, muito mal, apesar de possuir uma pitoresca tatuagem mal-feita de borboleta no ombro esquerdo (era difícil não rir, e ai de mim se o fizesse).

Enfim, com toda a concentração para ser educado e interessado, pois a proposta me interessava, eu perguntei sobre o que eu precisava fazer. E ele disse que eu apenas deveria concorrer pela única vaga de técnico que eles tinham, uma vaga técnico que abriria a chance inclusive da empresa pagar a metade do curso que eu fisesse (caso fosse particular e eu nunca achei que passasse em qualquer curso na USP). Falei legal, com quem eu teria de competir ? E ele respondeu “- Com o César” Isto é, com meu amigo do colégio que indicou a vaga que ocupava e, acima de tudo, era pai.

Vocês me desculpem, mas eu pensei no caso por um dia. Por um dia não tive princípios e, diziam, o que acho equívoco, pois não o conheciam o César, nem seu potencial de trabalho, que eu passaria. Mas, para isso, eu teria de entrar de verdade na empresa, no espírito de competição e mais, na ilusão de que o único modo de se libertar era por dentro do sistema hierárquico da corporação. E era isso o que queriam. É estranho notar que nosso caso de amizade era observado e espionado, afinal, qualquer sinal de alteridade era um não controle que a empresa observaria de perto e nada, repito, nada escapava.

Seja o flerte que alguém tivesse com a estagiária de engenharia química que era “protegida”do chefe, ou alguém que não visse a proximidade do gerente que se colocava como cidadão comum para com o peão (contra o encarregado direto que é sempre mal) como algo positivo. Tudo o que desafiasse a fantasia de ascensão e a idéia de que qualquer um, caso estivesse na posição social do chefe, seria exatamente igual à ele e que, enquanto não é, desejava sê-lo sempre. Do mesmo modo como qualquer um desejaria exercer suas violências e poder consumir o que consumisse, assim como ser visto como poderoso, alguém que não depende dos outros como o trabalhador subalterno. Trabalho que em si mesmo seria visto como uma dádiva.

No caso da fábrica, trabalhar durante o horário diurno e ser um técnico colocava outra característica, permitia comer no mesmo restaurante que os demais sem aquilo que nos distinguia: um uniforme branco que separava os trabalhadores do setor produtivo dos demais trabalhadores, mesmo subalternos do administrativo, mas também dos engenheiros e técnicos que, mesmo frequentando os mesmos locais de trabalho, podiam utilizar suas roupas normais. Ou seja, outras pessoas olhariam no seu rosto sem desviar.

Tive força ao menos de não negar tal proposta em silêncio e dizê-la em alto e bom som ao encarregado o que garantiu, até o fim de minha jornada naquele local fabril, os olhos mais pesados olhos da chefia me obrigando a um delicado equilíbrio enquanto lá durasse, mesmo como técnico especializado. De qualquer modo, era melhor manter qualquer valor subjetivo, como um coisa não roubada, pois os ventos mudavam inevitavelmente para não haver mais esta chance de negação que ainda pude dar ao recusar interiorizar os valores daquele mundo totalitário e doentil.

A VISITA DA QUALIDADE AOS SETORES: O 5S EM PRÁTICA

Até hoje aquela palestra é incompreensível. São cinco palavras que se relacionam com qualqeur aspecto do cotidiano tanto como qualquer princípio oriental de condutas. Sintetizo do seguinte modo: são mensagens abstratas que não indicam condutas normativas, mas são abertas à interpertação, nestes casos, o processo de interpretação é o que conta, uma conduta que depende de alguém que interpreta.

Muitas vezes um texto que descreve uma norma pode ser utlizado de dois lados. Por quem manda e por quem é mandado, basta que seja claro o suficiente e prescritivo para que permita a interpretação daquele que é mandado e este acredite que aquele que manda igualmente deva obedecê-lo. Isto limitaria a ação de quem manda e restringiria a sua soberania sobre a interpretação de uma dada situação. Nada disso vale para estes princípios de inspiração oriental que vão desde as leituras empresariais do Sun Tzu quanto à leitura do livro vermelho do Mao Zedong pelo atual PC chinês.

Quando eles estão em ação, somente um intérprete iniciado pode explicá-los e então você só se dará conta se está ou não dentro daqueles preceitos quando postos em prática pela autoridade autorizada neste preceito.

Seu Silva mantinha muito organizado seu setor e, por isso, sempre imaginou estar seguindo o 5 S, mas não estava. O 5 S não seria interpretado por ele, mero peão. Não senhor. Ele só poderia saber se estava ou não sendo aplicado quando o engenheiro fosse até o local de trabalho, obervasse o setor e concluísse sobre o que estava errado. As fotos de crianças então foram removidas como qualquer outra lembrança pessoal dele sendo todo o setor rearranjado num padrão a ser aprendido por todos, inclusive por ele, que parecia, aparentemente, totalmente integrado, o que valeria igualmente para a organização dos manuais, disposições, processos, etc. Tudo deveria parecer impessoal e determinado por um outro, o engenheiro de processo.

Não importa se observássemos os trabalhadores europeus em fotos de exemplo nos slides que vinham prontos da empresa matriz e nos deparássemos incrivelmente (eu juro) com setores mais desorganizados e sujos que os nossos em produtos muito mais simples de lidar. Ora, tudo isso estaria sendo lido errado, assim como tudo se passaria por uma forma de organização diária do processo de trabalho em que o engenheiro acessaria e racionalizaria o “geitinho” do trabalhador, impedindo o mínimo de espaço de autonomia sobre o processo produtivo e, mais ainda, evitando qualquer pausa não regularizada e associativa.

Estagiários de engenharia igualmente nos fiscalizariam no turno da noite, assim como seriam dispensados os que não dessem índices de delação. Sem qualquer forma de solidariedade entre tipos de trabalhadores, que se cuidassem igualmente os laboratoristas que deveriam estar de plantão toda a noite e seriam testados periodicamente de modo secreto. Não surpreende, igualmente, que finalmente o sistema foi inteiramente implantado e nem que, seis meses depois, metade da fábrica fosse sumariamente demitida, assim como eu e alguns colegas, estivéssemos no topo da lista, principalmente por conversarmos sobre oposição à direção sindical.

Hoje compreendo melhor, mas não totalmente, o que é 5 S. Isto só melhora quando associo a outras palavras que fazem mais sentido quando pensamos com a cabeça do gestor, just in time, isto é, produção sem estoques e toyotismo. Só não compreendo exatamente como meu amigo citado, aquele César, é hoje o gerente daquela fábrica que tanto pegou fogo e tanta gente atormentou.

Estas terríveis mutações sociais podem ser compreendidas por quem lê o que Marx descreveu como a passagem da subsunção formal à subsunção real, contidas no livro I d`O Capital (capítulos XI ao XIII) que até hoje me intrigam por terem um peso real na vida, isto é, quando o processo inteiro de trabalho é programado pelo Capital até a subjetividade, tornado o homem um ser tão plástico como a matéria prima, e ainda mais porquê, por algumas horas, eu vi que a força de sua ideologia propulsora não repousa apenas sobre a abstração.

Para desespero pessoal, foi triste notar que quase capitulei tentando libertar minha subjetividade da concretude da fábrica apenas para, neste processo, condenar a de outro. Libertação que, no final das contas, teria resultado tão ilusória quanto foi a de meu amigo e quanto é hoje, sozinho, ter conseguido finalmente abandonar aquele mundo maldito de gases e sombras que deveria deixar de existir para sempre, ou mesmo o espectro que acompanhava aqueles que foram “liberados”, ou melhor, demitidos enquanto os que ainda lá ficam trabalham em um mundo cada vez mais totalitário e enlouquecedor, com ainda menos espaço de folga.

publicado inicialmente em Passa Palavra

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

ERRATAS E COMENTÁRIOS AOS LEITORES

1. Debridar, Desbridar

A palavra que achei ser debridar, que lembrava de orelhada, pode ser escrita também desbridar, a mesma palavra para a amputação de membros mortos.

2. Reapresentação do Trabalho

Alguns perguntaram se eu poderia não carregar tanto nas tintas e na descrição, outros acharam que fui pouco descritivo e segurei a fala. Uns notaram um tom auto-complacente, enquanto para outros observaram que este seria o ponto forte, o da autocrítica.

Coloco o seguinte, o tom é o da fala de alguém que hoje tem curso superior lembrando de mim, tempos atrás, como operário, vencido dolorosamente pela passividade daquela situação. O que ele fez doeu e é parte da minha memória, mas somos muito diferentes, tentarei ajustar a fala ao tempo que nos distancia. A reflexão é de hoje vindo daquele tempo as ruínas de uma época triste e dolorida que me carregou de imagens rancorosas e mudas, tento falar sobre isso.

Adiantando já uma parte do fim, a história é a de que hoje me sinto mais des-fetichizado (e desencantado) não conseguindo esquecer o quanto de trabalho humano desumanizado se esconde sob cada objeto que nos cerca, pois, enquanto mecadoria, ela é produzida por alguém e pressupõe uma quantidade inimaginável de sofrimento medida em tempo morto. No entanto, esta sensação se esvai no fato de me constatar muito mais alienado pelo fato de não mais criar objetos que, ainda que fragmentados pela divisão do trabalho, notando o fato de que neste processo, não se vê um objeto completo, mas partes dele, além de não possuí-los. Hoje constato que sequer me ponho materialmente no processo, vendo apenas o final, a mercadoria.

Pior é a sensação incômoda de traição de classe (ou de categoria?) ao sair daquele meio e abandonar aqueles que ficaram no sofrimento, ou teria eu dado uma finalidade a posteriori ao fato de ter sido um dos demitidos na grande reestruturação produtiva fabril que demitiu metade dos trabalhadores da fábrica em que trabalhei na época, continuando seu processo através da desregulação dos contratos de trabalho e do desemparo em relação às condições físicas dos trabalhadores?

É estranho falar sobre isto e notar que nada vi sobre o sofrimento ou mesmo a condição do trabalhador fabril excetuando pesquisadores como Tragtenberg, João Bernardo ou então o relato de Simone Weil na Condição Operária. Outro detalhe é notar serem só os socialistas heterodoxos a tratarem do tema, o que se explica em parte por Lênin que coloca o taylorismo como salvação dos problemas da produção planificada soviética (mesmo após ter escrito cartas contra este método tirânico antes da revolução), ou Gramsci que, ao citar Taylor, o vê com olhos parecidos com os de Engels no texto sobre o autoritarismo, onde a coerção do homem para a repetição maquinal contra os impulsos motores animalescos é considerado um progresso parecido ao da locomotiva em relação à carroça.

"Mas todo novo modo de viver, no período em que se impõe a luta contra o velho, não foi sempre, durante um certo tempo, o resultado de uma coerção mecânica? Até mesmo os instintos que hoje devem ser superados como ainda demasiadamente “animalescos” foram, na realidade, um notável progresso em relação aos anteriores, ainda mais primitivos: quem poderia descrever o “custo”, em vidas humanas e em dolorosas repressões dos instintos, da passagem do nomadismo à vida sedentária e agrícola (caderno 22, § 10)?"

Nenhum destes, exceto Simone Weil (que relatou sua experiência como fresadora da Renault em "A Condição Operária"), conheceu os extertores do trabalho, mesmo Gramsci, um dos únicos marxistas pobres da história, que conhecia somente sua ferramenta de trabalho, que era a mesma arma que Lukacs portava, a caneta. Simone Weil entendeu a profundidade de um dos piores aspectos subjetivos do trabalho fabril, o fato de que sofrimento causado docifica e não causa revolta. O trabalho e sua tortura emudecem o homem dentro da fábrica, enquanto multidões desamparadas e abandonadas à própria sorte querem entrar desesperadamente em busca de regularidade e sustento.


O sofrimento não causa a revolta e nossas conclusões talvez sejam externas à condição do trabalhador, como ao lembrarmos solitariamente das possibilidades históricas de ação, revolta e luta coletiva pela emancipação política que não são lembradas pelos que sofrem, e onde soa fantasia o que chega aos seus ouvidos, como bem vêem os nossos colegas que se tornam professores. Uma fantasia onde quem trabalha passa a agir como quem domina, como o violento, patrão, soldado ou policial, ou aquele que têm os códigos da violência fora da lei, dentro do cárcere ou fora dele na luta fatricida com a qual tantos convivem. As revoltas quando aparecem soam temporárias e com o tom de ressentimento aparece contra aquele que conta, esta história, em geral, um intelectual.

No entanto, apesar do que dizem os que narram o desmonte do trabalho, a fábrica continua lá e o atestam as mercadorias que continuam sendo produzidas tendo cada uma sua história macabra, ainda que se apresentem como se fossem saídas do nada e como se suas mercadorias se trocassem entre si. A desregulamentação do trabalho não trouxe menos trabalhos e fábricas com robôs aceleraram o cotidiano do trabalhador trazendo o seu tempo impossível de sofrimento e tragédia maquinal ao objeto de carne alugada que em movimentos repetitivos, velozes e eficazes deve acompanhá-la.

Se há dúvida a respeito de como sofrem mais que antes os trabalhadores das fábricas, vejam este link sobre acidentes de trabalho, onde vemos como hoje poucos trabalhadores de cada vez devem fazer o trabalho de vários outros que agora esperam no portão pela sua vez de voltarem a trabalhar (que pode ou não chegar). Para eles aparece a imagem de que é melhor correr o risco de morrer ali dentro do que lá fora, nesta vida entre a legalidade e a ilegalidade do trabalho informal sem saber que lá dentro os turnos esticados, a falta de segurança e a quantidade de trabalho por pessoa fazem com que se tornem ambas formas de trabalho irregular. Ao menos lá dentro serão socialmente reconhecidos como trabalhadores e não como bandidos, vagabundos dependentes de parentes aposentados num convívio forçado ou marginais, sem perceberem que não há margem.

Há ainda a representação artística. Porquê a fábrica repulsa à arte? Farocki colocou um problema parecido em Arbeiter Verlassen die Fabrik (Trabalhadores saindo da Fábrica, propositalmente homônimo ao filme dos irmãos Lumière), ao falar sobre as pouquíssimas representações no cinema do trabalhador na fábrica, sendo um deles, o único que coloca a fábrica como algo positivo, um filme nazista. Poderíamos lembrar de Schastye (Felicidades) de A. I. Medvedkin, apologia da produção em geral associada à vida não alienada ... num musical estalinista. Bom, tem também o Dançando no escuro.

Na literatura, em geral, o espaço de destruição da subjetividade escolhido é o trabalho de serviços, como o da doméstica, Fräulein Elza ou Macabéia, ou a do arrimo. Outros únicos grandes relatos deste gênero, como o livro Mano de Obra de Diamela Eltit, trata da circulação em um supermercado e da luta fratricida num Chile pós-Pinochet em que a solidariedade entre trabalhadores definitivamente se esvaiu em sombras e violência mútua.

A família impera sobre o trabalho em nossa literatura e mesmo fora do registro do testemunho de campos de concentração como Primo Levi em É isto um homem? ou do Arquipélago Gulag de Alexander Soljenítsin, não temos um relato literário verossímil sobre a fábrica em nenhuma parte da literatura mundial. Como foi que a base material do mundo foi constituída através de braços humanos sem deixar testemunha? Será que o ser humano que passa por seu interior é tão subjugado que a memória se apaga e se espalha sem guardar senão reminiscências? A fábrica, parte da grande corporação capitalista, conseguiu passar sem deixar vestígios na subjetividade humana escondendo suas entranhas? Senão vejamos.

Mário Pedrosa dizia que se o lugar onde é produzida a base material de nossa vida é o espaço do maior autoritarismo existente, criando uma forma política de poder totalitário absolutamente regulado, porquê achamos que vivemos numa democracia, ou melhor, seria a democracia liberal a forma de governo onde quem manda é a grande empresa capitalista, como bem pontuou João Bernardo em "Democracia Totalitária" e, mais ainda, será que a negação da representação da produção é um destes sinais?

3 REESCREVENDO SOBRE A DOR DA QUEIMADURA COM VAPOR

Como reclamaram sobre a descrição do momento da queimadura, tentarei de outra forma, como uma versão infame de Julio César quando falava de si:

Era uma tarde de sol quando D. sentiu uma pontada de dor aguda e indefinida nas pernas. Sentiu umidade e calor como aquele que as chamas causam no exato momento em que sua mãe lavava roupas e seu pai dava uma carona a seu avô no fusca de cor indefinível entre o bege e o alaranjado para uma outra cidade que nunca soube qual era. Neste mesmo momento João saciava sua sede bebendo água gelada no escritório de seu trabalho em Campinas, enquanto Juliano caminhava pelo centro da cidade pensando na aquisição de um pedal de efeito para sua bela guitarra, e Marcelo vivia as aventuras de seu primeiro ano de graduação em Marília, filósofo, por certo, do excesso que, entre um amor e outro, decidia-se sempre pelos dois. Já Sandro vendia seu décimo quarto automóvel voltando para anotar os resultados em sua mesa. Não sabia ele, mas em apenas alguns meses conheceria Thaís que dormia em sua cama depois de uma noite difícil de trabalho. Dormir, para ela, queria dizer preservar um dos seus instrumentos de trabalho sobre o outro ainda em uso. Com o corpo e a cama lhe era possibilitado aventurar-se entre drogas e festas incólume em sua dupla vida, ela ainda era desconhecida de Jennifer que fazia seu último ano de colegial na mesma escola que Fernando, sendo que, ambos, iriam mais tarde à piscina na casa de Fernando. Neste momento, Fernando M, outro rapaz, estudava em casa para a faculdade de Jornalismo em São Paulo. Ele editava fotos no computador, que se apoiava sentado em sua escrivaninha.


Estes móveis, entre camas e escrivaninhas, foram comprados em lojas abastecidas por produtores de móveis, para tanto, estava pressuposta para todos, sem saberem, as leis da produção em escala, tornando baixos seus valores em formas eficazes e industrialmente estabelecidas, resultando, para este caso específico, em serem constituídos a partir de aglomerados e compensados, isto é, eram feitos a partir de pedaços de madeira colados entre si.


À parte o processo da madeira, a resina que os colava era composta de fenol e formol, cujo processo dividido em partes era realizado em várias indústrias. Entre elas se estabelece a mais estrita concorrência darwiniana, produzindo o tal espécime sob os mais baixos custos, cortando, para tanto, os gastos supérfluos. Um destes lugares cortou, na mais estrita observação à lei da vantagem marginal, os gastos com segurança para os trabalhadores nas conexões entre dutos de vapor.


Deste modo, observamos que, se por um lado, não era estritamente necessário que D. queimasse a perna naquele exato momento, era inevitavelmente pressuposto que todos estivessem onde estavam para que isto acontecesse como aconteceu e que, se pudessem optar, sabendo disto, ninguém gostaria de estar no lugar de D. em meio a este processo.

Seria isto, mas ainda não gostei...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

AMACIANTE DE ROUPAS

OS ENCANTOS DO AMACIANTE

Enquanto minha mãe lavava roupas, eu adorava notar os efeitos das substâncias de limpeza, como as lagartixas que acidentalmente (mesmo, juro que não era eu, adoro lagartixas) caíam no balde com cândida (Hipoclorito de Sódio, NaClO) e se tornavam esqueletos limpinhos.

Mas os amaciantes de roupas sempre me intrigaram: o que diabos era afinal aquela substância?

A promessa do fabricante era fisicamente instigante se pensarmos bem, isto é, modificariam-se as fibras do tecido fazendo-as deslizar mais suavemente quando em contato com outros corpos, reduzindo seu atrito com a superfície de contato, quer dizer, ao menos é o que prometem. Há até um teste físico que se pode fazer para poder comprová-lo bem simples. Mas o fato é que colocam naquela bela imagem de candura e fofolência publicitária vários bichinhos de pelúcia, coisas fofas em geral, filhotes e bebês humanos. Ah, que gracinha de se ver!

Lembro das criancinhas com aqueles panos de que não desgrudavam nunca, como o Lino do Snoopy , aquele mesmo paninho sempre fofo que se colocava na boca das crianças desde pequenas e, antes mesmo de terem consciência disso, suas mães usavam aquele paninho constantemente lavado para limpar a baba de suas bocas e outras melecas. Enfim, quando limpos substituíam para muitos até animais de pelúcia. Penso que muito disto se devia ao amaciante de roupas.

Ao dosarmos sua medida para lavar roupas, notamos suas propriedades organolépticas. É de cheiro agradável, é como um lodo simpático que gruda na mão e precisa ser bem lavado para ser desgrudado.

Quando cheguei à indústria descobri o produto que lhe dava estas propriedades, eram duas substâncias gosmentas. Cada parte diluída em 15 outras partes de água somada à uma essência sintética de boa qualidade geraria o amaciante que conhecemos.

Se levasse para minha mãe um copo, renderia todo um litro de amaciante, mas o mais interessante era pensar em como se fazia este tal produto.

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE AMACIANTE

Haviam tanques gigantescos borbulhantes, algo como um cenário de filme de terror. No turno da noite, era quase bonito subir nas torres enormes, em plataformas de quatro e cinco andares com o piso gradeado de onde se via o chão enquanto se sentia a constante vibração das máquinas.

As máquinas falavam à noite entre si por quantidades infinitas de tubos que levavam e traziam substâncias químicas, vapor, óleo térmico e efluente. Por cima, por baixo, pelos lados, nada parecia indicar a passagem humana nestas paisagens desoladas de universos cyberpunk que poderiam ser projetadas por Philip K. Dick. Amigos da cidade e jogadores de RPG às vezes me davam uma carona para o trabalho e se impressionavam com aquela paisagem desoladora à noite. Ninguém entendia como conseguia trabalhar naquele lugar, ainda mais quando dizia que meu setor era isolado entre um trecho de mata desgraçada pela nossa presença química com o rio poluído nos fundos.

Vapores eram espelidos e máquinas faziam barulhos em ritmos sincopados. Contratempo de pulsações maquinais, cheiros os mais estranhos, exalados pelo vapor, mas nada pareceria mais estranho que o gigantesco tanque ao lado do setor de utilidades industriais que de vez em quando soltava um cheiro desagradável de sopa de carne sem tempero.

Era um gigantesco tanque que vagarosamente desprendia a gordura da carne recebendo restos de animais mortos. Parecia mais um serviço de reciclagem de lixo. Os restos sólidos desta papa infernal eram incinerados numa gigantesca torre do tamanho da torre da praça do relógio da USP. Mas aquela papa escondia um processo físico-químico bem mais sutil, por mais horripilante que parecesse.

Ao subir no tanque era necessário ver o nível daquela gordura para saber se ela estava sendo devidamente drenada. Antes que pense nisso, sim, já havia transbordado várias vezes por causa de problemas com as bombas: aquela gordurada melequenta era bem pesada e densa, exigindo bastante das máquinas que a bombeavam. Todas as vezes em que subi neste tanque tendo de observar seu nível era tradicional trazer uma contribuição de dentro do meu estômago àquela sopa nojenta - mas jamais subiria lá depois da refeição. Jamais.

Um dia o incinerador gigante de restos sólidos de animais mortos formou uma crosta.

INCÊNDIO NO REINO DA FOFURA

Esta crosta espessa se tornou algo como um “carvão” duro que um dia atingiu seu ponto de combustão. Para além da ponta do bocal do incinerador uma chama vermelha de seis metros de altura lançava gases escuros que enegreceram o dia. Isto tudo aconteceu numa tarde de segunda feira pouco antes da minha entrada em folga, algo como quinze minutos antes de trocar o turno, o que resultou no fato de que o próximo turno não entraria, além de meu mais profundo aborrecimento com aquele gigantesco tanque de gosma.

Quando ouvi o ruído do alarme de incêndio que se parece com uma buzina de caminhão tocando dois toques longos seguidos (se contínuo significa corra por suas vidas), assustei, mas subi para o ponto de encontro da brigada de incêndio da qual éramos obrigados a participar . Não era difícil perceber o céu se tornando escuro e uma labareda infernal saindo do tubo.

Chegando no ponto de encontro eu, que era um novato naquele tempo, e os demais escutávamos o que se passava. Depois caminhamos da caixa de água gigante que guardava a água que tratávamos do rio poluído que passava ao lado da empresa para processo industrial e combate à incêndio até chegarmos à proximidade do incinerador. Ali, finalmente nos demos conta do ocorrido.

Primeiro problema: O combustível que alimentava a chama do incinerador foi cortado, mesmo assim, a labareta insistia em permanecer onde estava. Segundo problema: passava ao lado do incinerador a tubulação de gás Hidrogênio, agudamente inflamável ao lado do incinerador, o que foi resolvido cortando-o. Terceiro problema: entre o administrativo e o incinerador havia um tanque de gás Amônia (NH3), na parte de trás do incinerador era o setor de peróxido orgânico, que trabalhava refrigerado a dez graus negativo, pois a zero grau era agudamente inflamável e à temperatura ambiente era explosivo, ao lado deste setor, ficava o setor que lidava com Arsênio, aí conheceríamos o Chernobyll brasileiro. Quarto problema: parafusos que prendiam a estrutura do incinerador voavam como balas soltando estampidos metálicos quando atingiam outros tanques. Quinto problema e mais grave problema: estava de saco cheio e meu chefe desconfiava de mim.

Pensei no caso de que se jogássemos água, os metais hiperaquecidos da torre rasgariam como folhas molhadas e lançariam fogo por toda a parte. O máximo que poderíamos fazer era morrer ou fugir até chegar os bombeiros. Tinha máscaras de fuga, sabia por onde correr conforme a direção do vendo na expectativa de gases tóxicos (sempre na perpendicular à direção dos gases), mas nada disso adiantaria contra o fogo direto contra nossos corpos entre substâncias químicas tóxicas e explosivas.

Enfim, conheci lições profundas como a pequenês humana, a efemeridade da existência sob o medo e as potências da natureza que só superficialmente são domesticadas pelo homem. Nada daquilo fazia sentido, passei a ter medo da química, destas moléculas, mesmo as inofensivas como as de gordura guardavam em seu interior uma força descomunal, o que provavam com todo aquele problema. Nunca contáramos com o potencial destrutivo de placas queimadas de gordura. Mas, para quê aquilo, afinal?

A FABRICAÇÃO DO AMACIANTE

Pois é, o que se fazia lá com esta gordura era torná-la uma longa molécula maior ainda de gordura, um gigantesco ácido graxo que reagiria com soda cáustica produzindo uma grande molécula gosmenta de sabão que simplesmente era a base do amaciante de roupas. E antes que se tenha dúvidas, todas as marcas de amaciante compravam esta matéria prima nojenta com que se diluía em diferentes doses de água e essência produzindo o amaciante de roupas, ou melhor, todas as marcas de amaciante de roupas.

Me perguntava sempre, eu que era vegetariano na época, se os demais sabiam disso...

EIS A CALDEIRA


Uma caldeira flamotubular bem limpinha – coisa típica e exclusiva de propaganda da empresa.

INICIAÇÃO À CALDERARIA

Por falta de uma definição melhor, uma caldeira é uma gigantesca panela de pressão. Ela aquece a água usada em processos, seja como condutora de calor, seja como condutora de águas para reações químicas. Ela está presente nos navios, fazendo mover as hélices, nos hospitais e restaurantes lavando louças e roupas, nas fábricas movendo rotores em termoelétricas.

Ela consome grandes quantidades de óleo fóssil a baixo ponto de fusão e quando queimada deve produzir uma chama levemente azul o que garante que está havendo óxido-redução de todo o carbono em dióxido de carbono C02 e evitando a fumaça preta que garante que resíduos sólidos (fuligem e fumos em geral) líquidos (óleos aquecidos em micro-partículas) e principalmente monóxido de carbono C0 sejam lançados à atmosfera. Ela demanda atenção constante e deve operar “tranqüila” em condições eminentemente normais.

Ela dá o tempo da fábrica. Numa greve, por exemplo, se o setor de utilidades industriais pára e a caldeira é lacrada, simplesmente toda a produção é parada e por causa disso, o setor de utilidades industriais ou é de extrema confiança ou é vigiado e assediado politicamente o tempo todo, talvez seja por isso que ficavam tanto no meu pé.

Deve-se observar sua chama interna, seu consumo de óleo quente e a entrada de água tratada sem dureza, isto é, sem sais metálicos que ao ser aquecidos solidifiquem no seu interior.

PRA FRENTE A TODO VAPOR

Sabendo como são acidentes com panelas de pressão, imagine o que seria explodir uma panela de pressão do tamanho de uma casa. Sempre pensei nisso e as fotos que vi me deixaram assustado o suficiente para respeitá-la. O calor é muito maior na metalurgia e na siderurgia, é claro, a fuligem, muito pior nas minas, mas uma caldeira não é um objeto simpático e se aquecida sem água geraria uma onda de impacto muito violento, pois trabalha sob extrema pressão. Vulcano e Netuno se agitam em seu interior sem se entenderem.

Explosões de caldeira são constantes e muito ligadas ao tratamento da água, na época, minha especialidade, evitando entupimentos. Na outra fábrica estava muito distante de um objeto destes, ainda que mais próximo de coisas mais perigosas.

No entanto, vazamentos de vapor eram coisa pouca naquela fábrica, como chamavam carinhosamente os peões, "boca de porco" dadas as substâncias resinosas com que se trabalhava resultando num aspecto de sujeira constante. Além disso, o aspecto da área em que fica a caldeira é sempre envolto em óleo.

ADAPTAÇÃO TÉCNICA, GAMBIARRA

Nós ali éramos obrigados a lidar com aquilo e, na disciplina da fábrica, as coisas tem que ser feitas não importa como. Não importando se não havia, por exemplo, válvulas próprias para ligar as mangueiras num duto de vapor o que gerava problemas.

Pelo fato da fábrica ser ao lado de uma rodovia num ponto elevado, muitas vezes ouvíamos barulhos de explosão, que, para nosso alívio, eram pneus de caminhão estourando, de onde despregavam-se as câmaras se tornando estas parte dos isolamentos e ligações de mangueiras de vapor que usávamos.

Os engenheiros chamavam isto, quando eles faziam, de adaptações técnicas provisórias e quando nós fazíamos, gambiarra, era toda uma filosofia de vida e do trabalho. Era capaz de gambiarras as mais improvisadas e surpreendentes que envolviam tudo o que sabia de física e química. O importante é sempre manter o fluxo contínuo da produção.

Mas a da mangueira, que não foi feita por mim, um dia falhou e soltou-se atrás de minha perna esquerda.

COMPANHIA INDESEJÁVEL

A dor foi imediata e lembrei dela por anos em todo detalhe. Aliás, por três anos seguidos até tornar-se mais raro. Acordava à noite num susto ou pouco antes de dormir, ficava endireitado com o corpo rijo, com palpitação e suado.

Desde aquele momento o que fica na memória é a dor que foi minha acompanhante por meses seguidos, mas tentarei lembrar dos outros detalhes do momento.

Pensando sobre isto hoje, vejo como é difícil descrever isso para quem não sentiu a dor de queimaduras graves. Junto com muitas outras, uma jovem vietnamita foi incendiada por bombas de Napalm, produto feito de sais de Alumínio co-precipitados dos ácidos Nafténico e Palmítico, e hoje Benzeno e Poliestireno produzidos comercialmente pela Dow Chemicals, como bem mostrou Harum Farocki no filme o “Fogo que nunca apaga”, os trabalhadores, engenheiros e químicos da empresa eram completamente alienados dos seus usos, seria o meu caso?

Mas Thai Bihn Dahn conseguiu colocar isso muito bem no tribunal dos crimes de guerra em Estocolmo em 1966 quanto em frente aos cínicos: “Como podemos mostrar-lhe napalm em ação? E como é que podemos mostrar-lhe as lesões causadas pelo napalm? Se nós lhe mostrarmos fotos de queimaduras de napalm, você fechará os olhos. Primeiro, você fecha os olhos para as fotos. Então você fecha os olhos para a memória. Então você fecha os olhos aos fatos. Então você fecha os olhos a todo o contexto.

DEBRIDAMENTO

Sinto-me extremamente impotente em falar do que é ser jogado inadvertidamente numa situação desta. A intenção não é ferir você também, só porquê eu fui ferido, mas tentar dividir esta situação incômoda que se repete para outros e expelí-la do incômodo silencioso, então, tentemos de outro modo. Era um dia de sol sem problemas quando aconteceu...

Na seqüência, fechei a válvula de vapor, após cair por alguns minutos no chão, pois isto era vital, se caldeira secasse, como expliquei, explodiríamos, mas como consegui fazê-lo com tamanha dor, isto eu não sei. Joguei água fria, o que aliviou imediatamente e manquei até o setor dos painéis.
De lá chamaram o rapaz que era socorrista. Era um feriado e não havia qualquer tipo de enfermeiro, apenas um rapaz igualmente peão como eu, mas com treinamento e liberdade de usar a antiga Caravan-ambulância.

Ao chegar até mim, o rapaz cortou minha calça o que produziu uma dor aguda. A gordura de minha pele derreteu-se e minha pele era uma folha solta com a calça grudando em algumas partes. O rapaz ficou enjoado e não lembro se vomitou ou se apenas ameaçou vomitar, isto não importa, o fato é que sua expressão me assustou a respeito do que me esperava.

Perguntei se era grave, mas ele não respondeu. Fiquei nervoso, mas felizmente quando estou nervoso, consigo disfarçar muito bem com bom humor cínico, que é um clássico de família em situações deste tipo. O carro andou e doía cada vez mais. Cada vez que meu cérebro relaxava , parecia que entendia mais o que aconteceu e a dor aumentava.

Cheguei ao hospital com dores lancinantes, mas tentando disfarçar. Pareceu muito melhor fingir que não era comigo e assumir uma atitude estóica entrecortada por alguns resmungos e gritos quando não dava pra segurar. Passei a morder um pano e hurrar disfarçadamente.

O médico veio, olhou minha perna e descobri que estava num hospital em Jundiaí especializado em queimados. Tentei ser simpático pensando em evitar que ele também vomitasse de nojo da minha perna como o outro, ou eu de nervoso e dor. Não estava pensando direito.

Foi muito rápido na minha cabeça, mas o que chamam “debridamento” é realmente indescritível, mesmo assim, eu vou tentar falar sabendo que você provavelmente você irá se insensibilizar. Basicamente consiste em cortar as partes de pele e carne morta, separando-a da viva, o que se descobriu em ato ao me cortar. Ao pedir delicadeza repetidas vezes neste procedimento e percebendo que estava sem anestesia, senti como se a enfermeira me tratasse como gado, não me aguentei e simplesmente fui indelicado e bati em sua mão dizendo que eu não era um animal e sentia dor.

Desculpem a frase, eu era vegetariano nesta época, acreditem e não pensei nisto, pensei como se eu fosse um boi sendo recortado, o que se lia na expressão em seu rosto.

Ela prestou mais atenção. E graças à ela, eu sempre lembrarei do verbo debridar, que associo à técnicas descobertas na inquisição de alta eficácia. Com o devido tempo, confessaria o que fosse.
Pouco depois vi passar o médico que pareceu simpático, mas o assunto me deixou irritado. Ele estava acompanhado de meus chefes e capatazes e estes perguntaram se eu não estaria drogado, pois parecia muito controlado e, estando naquela altura com as duas pernas enfaixadas, pensei no pior. Além de tudo inventariam algo contra mim.

Felizmente o médico foi honesto e apesar de preferir estar do lado dos capatazes, nada inventou em meu prontuário.

RECUPERAÇÃO E ATEÍSMO

A dor continuava rigorosamente, mas ao entrar na sala ao lado, tive uma visão que me deixou anestesiado, vi pessoas com faixas similares às minhas esperando, mas as faixas cobriam os rostos, e mesmo o corpo todo de uma pessoa. Pensei se não seriam todos acidentes de trabalho, como se nossas vidas, nossos sonhos, nossa beleza tivessem sido roubadas pelo trabalho.

Passei e entrei num quarto onde as pessoas vinham me visitar. Minha mãe que não me deixou jamais abandonar o trabalho para estudar, meu capataz e o gerente da planta que cinicamente tentaram armar contra mim há poucos segundos e meu pai com quem vivia brigando como um cão contra outro disputando espaço desde a adolescência.

Acompanhante de cada instante desde então, a dor se anunciava em cada instante que meu cérebro entendia o que aconteceu ao corpo. Nenhuma posição a evitava. Anestésicos me faziam pensar em outras coisas além da dor, mas ela não desaparecia, além de eu ter de comtemplar a tudo imóvel.

Fiquei sabendo que não foi uma queimadura de terceiro grau, o que sacrificaria para sempre meus movimentos, mas o que chamam de segundo grau profundo, isto é, os músculos estão lá, bem passados em algumas partes e os nervos estão lá também sem a sua companheira pele, derme e epiderme, assim como a gordura. Então o nervo dá sinais de dor que são quase insuportáveis, causam alucinações, palpitações e marcam constantemente a sua presença, pois deveria estar dentro e não fora.

Como toda esta meleca estava para fora, deveria tomar, além de codeína, doses enormes de antibióticos que poderia agravar a situação, pois estaria exposto por longo tempo devido ao tipo de tratamento que escolheram pra mim.

Decidiram por mim deixar a pele crescer lentamente de baixo para cima e quando estivesse presente ao menos a pele inferior, deveria aprender a esticá-la e colocar uma sobre-pele, uma cobertura que substituiria a pele, junto com o óleo artificial que simula o da pele. Com o tempo deveria forçar a perna a se exercitar e engrossar conforme a carne voltasse.

Tudo isto levaria meses e muita dor, toda ela, todo o tempo, sempre. Demorei para conseguir dormir um pouco mais e o sono demorava o tempo do efeito do anestésico.

Dia a dia, imobilizado em casa, devia umedecer a pele, desgrudar a gaze de onde deveria haver pele, e só restava aquela meleca e colocar uma nova. Dia sim, dia não uma enfermeira muito bonita, digo, meu tipo de mulher que não é de outros, algo entre a garota forte do Crumb e a gordelícia como aprendi em São Paulo.

Voltei a pensar em algo como a vida, sexo e estas coisas. Infelizmente, minha mãe me acompanhava, afinal, como ir até o hospital sozinho?

Era triste chorar ao lado de uma gata que me atraía e minha mãe, pois a dor arrancava lágrimas dos olhos, devo admitir. Nestes instantes parece que Deus se afasta dos homens. Quem sobrevive a isto com fé, bendito seja, eu não fui.Não passei incólume em nenhuma forma de religiosidade que já tive. Dor, humilhação, interdição social foram demais pra mim.

A RESSURREIÇÃO DA CARNE

Posteriormente percebi um traço, um olhar, como se ela demonstrasse – a enfeirmeira – desejo. Não acreditei, mas descobri depois que um amigo meu teve um caso com uma enfermeira deste mesmo hospital. Descrita a pessoa, era a sujeita, pensei.

Mas ele não passava o que passei, eu estava impossibilitado de amar, recebia telefonemas calorosos e conheci muitas garotas lindas...na cama, vendo meus amigos ficar com elas na cama do meu irmão ao lado.

Que tipo de sadismo era esse, eu nunca soube. Mas pararam de aparecer, até eu desaparecer da vida social.

No mais, passaram meses e muita dor, toda ela, todo o tempo, sempre. Demorei para conseguir dormir um pouco mais se o consegui.- fosfato de codeína, lhe sou grato, amém. Mais à frente percebi o crescimento da derme e, realmente, o sádico tratamento funcionava.

A perna direita preservou-se, mas a esquerda era o problema. Quando o tecido constituiu-se minimamente veio outra tarefa. O médico passou o aviso de que agora, quando a dor finalmente reduzira, pois entre os nervos e o mundo havia a pele, eu deveria esticar a perna forçadamente, caso contrário não conseguiria movê-la.

Assim começou o dolorosíssimo exercício que consistia em algo tão simples quanto pegar uma gaze entre as mãos, colocar a planta do pé esquerdo na base e puxar ao mesmo tempo em que se estica a perna. Pareceria simples, não fosse o fato da minha perna esquerda estar imobilizada há meses e o tecido não esticar assim naturalmente.

Deixava um clássico rolando do Buthole Surfers, Human Canonball muito alto e gritava sem constrangimento, repetidamente com medo, é claro, de que não pudesse voltar a andar. Num dia desses o tecido se rasgou levemente produzindo a dor de um corte, o que era infinitamente menor do que eu sentia, as coisas regrediriam um pouco mas voltariam a funcionar.

Lembro de ir a shows sem poder beber e participar de festas no período de recuperação, a dor era indescritível, pois o tecido esticava, mesmo de muleta, de modo infernal. Mesmo descrente clamava por piedade a qualquer entidade responsável pela administração do Universo, mas como qualquer pedido ao serviço de atendimento ao consumidor, não fui atendido e ficava esperando na linha.

DE VOLTA À CALDERARIA

Voltei à empresa para uma pequena piadinha de humor negro poucos meses depois, isto é, me mandaram fazer um curso sobre Caldeiras no SENAI. Aquilo seria o fim da picada, não fosse o fato de perceber que a Fábrica era outra no meu retorno, isto é, trocaram todos os equipamentos, não havia mais pedaços improvisados de borracha prendendo dutos de vapor, mas válvulas de aço inox. Parecia outro lugar.

Na curso de calderaria conheci outros caldereiros, gente que trabalhava com aquela máquina de cozinhar gente, de onde soube diversas receitas. Uma delas, na gigantesca caldeira que queima restos sólidos da Duratex.

Ela era uma caldeira gigante, admirável construção da metalurgia da década de 20 e 30 alemã. A têmpera dos metais permitia uma dilatação linear específica que transmitia o movimento até o alimentador de calor. O mesmo mecanismo que hoje sofisticados indicadores eletrônicos de calor tentam substituir com falhas, era grosseiro e mais simples, diria, "física de colégio", mas funcional num período em que tal precisão se dava pela metalurgia.

Mas os metais não escapam ao desgaste e aquele não seria diferente, um dia quando o pré tratamento de água num gigantesco tanque de água fervente se rompeu, a água com substâncias alcalinas diversas caiu sobre o seu tratador de água, algo próximo do que eu mesmo fazia só que em escalas descomunais. O homem derreteu inteiro na água fervente.

A partir daí, nada melhor eu poderia esperar da indústria química senão sobreviver à ela.

FORMOL



FORMOL


Formaldeído ou Metanal – H2C0

LEMBRANÇAS DE UM NERD ENQUANTO JOVEM

Fui um garotinho nerd com gosto por química. Meu primeiro Kit de laboratório era um brinquedo que ganhei, mas que nunca vi para comprar. Ele trouxe à tona algo que estava latente, pois estudava química muito antes de entrar no colégio, onde desenvolvi meu próprio método de cálculo estequiométrico reconhecido pelo mesmo professor de química “alquimista” e cabalista que me acompanhou desde a quinta-série. Um sujeito enorme que despertou meu apetite inicial por pesquisar ciências e aliviou muito meu gosto por dinossauros, armas (tinha militares na família e na vizinhança), ocultismo, religiões e música (ahh... nem tanto).

Deste pequeno kit desdobrou-se um problema quando acabaram os reagentes que o compunham. Mas isto por si só gerou outro brinquedo ainda mais divertido através de outra compreensão do cotidiano. Descobri com o tempo que todas as coisas são compostas de substâncias químicas. Mesmo, pode zombar de mim, mas isto não é tão banal quanto parece, Podemos perceber estas coisas, mas compreender, isto é, quando “cai a ficha” efetivamente, como quando as pessoas se emancipam no analista, é muito diferente do que quando informam a você as coisas através da TV e do Wikipédia, não que os negue, longe disso. A TV antes disto me educava pela anestesia, como muitas crianças que só tem isto e o futebol de rua além dos brinquedos entre crianças, igualmente mediados pela violência como brincar de polícia e ladrão ou arrouxeadoras guerras de estilingue com sementes de mamona...

Enfim, tudo começa do mais simplesmente observável, como na química é a titulação ácido-base com indicadores de mudança de pH. A partir disto, descobri, para minha alegria que as substâncias alcalinas poderiam ser cedidas pelo amoníaco dos vendedores de desinfetantes de rua, nestes caminhões que passam por aí, e o Lacto-purga continha em sua fórmula o precioso indicador fenolftaleína, que mostrava a presença de bases deixando-a da cor vermelha, bastava moer o comprimido com álcool que este diluiria a fenolftaleína enquanto coagulava a lactose, e depois filtrá-la com um coador de papel para café e utilizá-lo.

Resumindo aos leigos, poderia fazer o tal “sangue-do-diabo”, isto é, irritar as pessoas deixando-as desesperadas com a roupa manchada de vermelho até que a acidez da tinta das camisas neutralize a alcalinidade do amoníaco deixando-a novamente transparente, enfim, parte da vingança dos nerds, mas que só dura uma vez.

Mais tarde descobri no laboratório do colégio técnico um segundo efeito da fenolftaleína daí derivado. Nós que fazíamos estágio às sextas-feiras à tarde, perguntávamos a nós mesmos: “- Se a fenolftaleína é a substância que causa o efeito laxante do Lacto-Purga quando diluído, o que causaria aquele frasco que tínhamos à nossa frente, puríssimo?”

E assim, na outra semana realizamos a experiência ao colocar a fenolftaleína nos frascos de catchup e mostrada da caríssima e única cantina do colégio, esperando posteriormente na sala de aula para verificar os resultados. Neste sentido, o congestionamento do banheiro e as pessoas faltantes em sala denotavam que nossa experiência teve resultado positivo.

FORMOL, FALSAS PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Outra história diferente foi a descoberta do formol. Com esta substância fiz um insetário (mas não só insetos, sejamos justos aos pequenos crustáceos e miriápodes) ao injetá-la nos pequenos bichinhos. A praia então dava margem a explorações muito complexas. Estes pequenos bichinhos foram sistematicamente anestesiados e ressecados com uma mistura ideal, aliás, vi estes dias um site perfeito sobre isto que me poupa ficar dando estes detalhes sórdidos de necrozoofilia.

Imaginava que a função social do formol é preservar como vivas as coisas mortas que já foram vivas como os fetos em frascos de formol.

Foi assim a segunda vez que vi esta substância com cadáveres em catacumbas na Faculdade de Medicina de Jundiaí, onde sempre me comoveu o sadismo dos estudantes de medicina ao mostrar seu laboratório de anatomia cujo princípio incorporávamos e transmitíamos a nossas colegas de ginásio, assustando-as. Em momento de desafio, cheguei a colocar o dedo no olho de um cadáver imerso num gigantesco tanque de formol até sair o humor aquoso, Neste tanque estavam também alguns órgãos como que desfiados pelo tempo de imersão, posteriormente lembrei deste aspecto graças à tentativa de deixar um figo envelhecer numa garrafa de cachaça.
Era o primeiro ambiente impregnado de formol que conheci.

Pulemos esta fase, o fato é que também descobri o efeito lacrimogêneo do formol, o que me trouxe certa paz momentânea, é claro, quando usado em outros valentões por exemplo.
Eu era um menino mais novo em relação à geração que contornava minha nova casa entre a classe média e que, salvo engano, viviam bem melhor que minha família, recém egressa da bocada.

QUÍMICA DE GENTE GRANDE

É estranho lembrar disso, mas a indústria química sempre me atraiu quando a via ao longo da estrada no caminho para a casa de minha avó no parque industrial químico entre Jundiaí e Cabreúva. Era estranho observar a complexidade daquelas estruturas futurísticas.

Pois um dia no futuro estava eu lá, numa destas fábricas que sempre admirei ao fazer em escala aquilo que eu fazia em pequena dimensão, gigantescos cilindros no lugar de meus pequenos beckeres, buretas e tubos de ensaio.

Algo da técnica e da capacidade constituída pelo homem um dia realmente me encantou, Mesmo tendo passado pelas estranhas experiências que passei em meu emprego anterior, me descobri novamente desejando não só dinheiro, mas tentando desta vez um novo emprego num lugar, a meu ver, menos inseguro, digo, algo em que talvez não me sentisse destruindo o mundo aos poucos e com o potencial infernal de transformar a região em que trabalhava numa Chernobyll. Mais preciso seria dizer como Bhopal, na Índia, muito mostrada em nossos vídeos de treinamento onde a fábrica da Union Carbide na manhã de 3 de dezembro de 1984 despejou 42 toneladas do gás metil isocianeto que matou 3.000 pessoas imediatamente, 8.000 em duas semanas e 8.000 de doenças derivadas no período posterior, com contribuição também da Dow Chemicals, criadora da Naphalm e outras coisas.

Nada com indústrias químicas foi pior que aquilo, execeto se acontecesse na fábrica onde trabalhava anteriormente, pois a empresa em que trabalhei era muitíssimas vezes mais perigosa, pois lidávamos com Tricloreto de Arsênio ao lado de uma plantação de morangos ao qual voltarei em breve. Digamos que nenhum lugar do mundo a aceitou, só o Brasil (na época FHC, mas acho hoje que qualquer um) e nenhuma cidade do país, excetuando Itupeva, no interior do estado de São Paulo ao lado de fábricas clandestinas de combustível, indústrias de gases industriais altamente explosivas, enfim, o lugar merece toda uma atenção particular foi onde mais passei meu tempo de pião de fábrica. Sempre com muito medo, pois tudo podia acontecer.

Ao entrar na última empresa química que trabalhei, a Elfo Autoquímico (nomes de fantasia, hoje é de outra empresa, a Santo Gabão), achei muito bonita pelo seu exterior, apesar de nada comparada à multimilionária e futurística empresa em que trabalhei antes. Tanta era a simplicidade e não racionalização completa dos processos, talvez pela muito mais baixa periculosidade aparente de seus produtos ou pelo baixo valor agregado, entre os quais solventes e resinas. Fui designado para o setor de utilidades industriais e ... Formol.

PEÃO QUÍMICO

Nada poderia dar sinais mais amistosos de tranqüilidade e menor periculosidade que seu refeitório, mais simples e tranqüilo, além do cartão Hollerith eletro-mecânico e não digital (falarei um dia deste interessante dispositivo de controle de tempo).

Me explico, em meu emprego anterior, antes de quase iniciarmos uma rebelião por esta causa, tínhamos que, após banho de descontaminação, nos vestir com um uniforme branco, de cor diferente da utilizada no trabalho, o que nos demarcava no refeitório como um campo de concentração. A comida era boa o suficiente, mas o executivo comia a La carte, qualquer coisa que pedisse, em mesas demarcadamente isoladas, aliás, esta era a função do uniforme: os trabalhadores da planta não podíam se misturar com o administrativo, isto é, deviam ser discriminados social e espacialmente.

Tudo mudou, talvez graças à leva de estagiários em engenharia química da UNICAMP que desrespeitava esta diretiva - que mais à frente talvez merecessem um capítulo à parte - mas o fato é que era difícil categorizar o papel de outros dois sujeitos, o engenheiro, pois, se ele também está na planta, porquê ele pode utilizar suas roupas normais, junto com o supervisor (ou capataz, entre nós, por cumprir analogamente a mesma função), pois também não estavam até então conosco na planta? Enfim, nada disto havia entre os franceses, diferentes dos flamengo-americanos, os anteriores proprietários de minha força de trabalho.

Não agüentava mais ver formol, isto é fato, ele entrava como metanol e se tornava formol através de gigantescos reatores com eletrodos de prata puríssima, para depois, abastecemos os caminhões-tanque de formol. Caminhava sempre por cima deles e despejava o formol operando gigantesca tubulação de alumínio até visualizar a marca que definia a quantidade indicada. O problema é que um caminhão tanque era observado de cima pelo operador com o tanque de alumínio quentíssimo em dias de sol após transitar por longas estradas. Ao verter o formol este evaporava imediatamente como um gás lacrimogêneo nos fazendo arder as mucosas. E como ardiam! E como chorei mecânica e copiosamente... Se pusesse máscara não veria o nível devido ao gás que embaçava e se transbordasse, bronca. A única forma era tentar visualizar, choroso, à olho nu. Agora, se perguntar nos manuais, ou inquirir o capataz, nada disto seria dito. Tudo isto conseguia ser imposto sem se obrigar diretamente pela fala, o que seria assumir uma irregularidade, uma ação ilegal.

FENOL

A primeira impressão positiva passou muito rapidamente, pois nunca havia comido num lugar que desse tamanha impressão de tristeza. Vi outros ex-trabalhadores da Acaso Móvel (fui recomendado a usar nomes de fantasia) presentes, mas nenhum deles brincava ou tinha um sentido de comunidade, ali era demarcada a indiferença conosco, não estávamos lá como trabalhadores braçais especialistas, mas como trabalhadores braçais somente.

Reconheci um dia uma cara conhecida no refeitório e depois no almoxarifado indo pegar peças e equipamentos de proteção individual. Via muito pouco as pessoas do administrativo ou do laboratório, pois mesmo trabalhando em três turnos revezados, entrava muito mais cedo que o administrativo e almoçava mais cedo também, no entanto, eis que reconheci o garoto muito jovem que estava lá e que fora amigo de meu irmão mais novo na escola. Parecia trabalhar naquele lugar com muito orgulho, assim como seu pai.

Seu pai era um caso típico, ele se esforçou para pagar o colégio técnico em química do filho em escola particular, que talvez até tivesse o mesmo ímpeto pelas ciências, quem sabe, o fato é que seu pai, para isso, teve de trabalhar muito e fazer muitas horas extras, mas agora já não poderia mais custear seu filho, o que achei tranqüilo, pois nunca tive escola particular ou o que seja, no entanto, o fato é que hoje ele, antigo trabalhador do setor de resinas, aposentou-se por invalidez, após oito anos de trabalho, a média do setor e hoje respira por um tubo no nariz, pois precisava utilizar a boca para cuspir sangue.

O jovem de pele morena e meio gordinho, sempre tido como um tipo pouco esperto entre os outros garotos cheios de malandragens era muito hostilizado, digo, meio lerdinho. No entanto, sabia de seu provável destino e se encaminhava pacientemente para ele, eu não sabia se por um tipo de estoicismo, um comportamento maníaco ou por estar preso àquelas referências. O fato é que eu me achava muito mais esperto por ter sido formado num curso público em saneamento ambiental e trabalhar em formol e utilidades industriais, como tratamento de água, efluente (o que vai, esgoto) e caldeiras e não no setor de resinas fenólicas.

Aquele lugar era deprimente, avermelhado e com máquinas que emanavam pó por toda parte, um pó tóxico e perigoso que o tempo todo caía em flocos, e tornava a superfície daquela caixa gigante como se fosse de pelúcia. Os uniformes ficavam avermelhados e imaginava que dificilmente haveria uma técnica para tirar os equipamentos de proteção individual sem se contaminar com Fenol.

Ora, se até aquele momento, lembrava dos anéis aromáticos do fenol, foi com carinho e respeito, como numa daquelas aulas de química orgânica em que dava muita atenção no colégio técnico onde foi citado o conceito de que suas ligações eram simultaneamente duplas e simples num paradoxo quântico, no entanto, ninguém havia me preparado para aquilo.

AS IMPRESSÕES EVAPORAM

Sair de lá era muito aliviante, pois os vãos não protegidos do uniforme coçavam sem parar. Aquelas pessoas ficavam lá enchendo sacos e sacos daquilo e achei interessante o único mecanismo moderno que tecnologicamente parecia substituir parte do sofrimento por esforço físico repetitivo em algo mais eletromecânico, o que pareceria um uso inteligente da tecnologia. A grua permitia gigantesco esforço físico, no entanto, forçava o ritmo e a dor da repetição constante dos movimentos o que tornava aquela sala funcional dia e noite em um gigantesco comportamento maníaco e acelerado para produzir resina fenólica. Este pó que pinicava entre a face e a máscara de sólidos que os protegia pelos oito anos que durava seu período útil, me assustava pelo seu aspecto. No entanto, de tudo isto resultava a resina fenol e formaldeído que constituía os móveis mais usuais à nossa volta.

Ritmo e produção, eficácia e lucro calculado em termos de produção contínua e homens continuamente produzindo, afastamento e acidentes são calculados numa relação custo x benefício. Quantas pessoas se acidentam e quantos processam? Quantos dias de trabalho perdido, única moeda de troca que envolve a saúde do trabalhador como pressuposto. Ou seria só porque era garantido que ela sacrificaria a produtividade?

Para quem não sabe o que é resina fenólica, ela é a base daquilo que forma os compensados dos móveis vendidos tão barato sob financiamento que estes mesmos homens compravam. Eu me sentia feliz de não trabalhar ali, mas era uma felicidade mais que duvidosa, talvez relacionada à uma sensação maior de controle das máquinas e equipamentos e a um tempo mais auto-organizado no ar livre, pois as máquinas que controlava diretamente diziam respeito ao consumo de matérias primas e entre elas o vapor e as matérias primas orgânicas, os líquidos que fazíamos reagir para produzir outros líquidos e sólidos. Transmutação constante da alquimia da fábrica.

Vi coisas interessantes como a uréia pura que em contato com a água gelava dando a temperatura que permitia saber sua pureza. Imaginei como levar uréia para o mato, fazendo gelar coisas quando acampava.

Também me era interessante a transmutação do metanol em formol. O incômodo de participar deste processo era que para trabalhar com este calor e estas substâncias, usava coturnos de metal que entortavam e faziam doer meus dedões, muito os amaldiçoei, pois meus pés são grandes e naquelas botinas ficavam ainda mais desajeitados, outro incômodo destes equipamentos que me protegiam era o suor dado o calor que me causavam e que, por sua vez, causava bolhas e cortes e, quando em contato com o formol, ardiam muito. Do mesmo modo as pesadas máscaras faciais Dräger faziam-nos suar muito mais ainda.

O MOTIVO DE TUDO

Meus pais não tinham idéia do mundo em que eu vivia, nas oito horas em que passava nestes locais e sempre zombavam de minhas reclamações me dizendo muito delicado e fresco. Meu pai era um filho de militar, minha mãe, de camponeses numa grande família em que eram todos mão de obra não remunerada. Tanto trabalho que teve como colhedora e plantadora não lhe deram qualquer aversão ao trabalho, especialmente porquê quando teve filhos este lhe foi vetado pelos meus avós, o que a deixou muito ressentida conosco.

Todos achavam que o importante era o dinheiro que trazia, e ainda morava com eles e aproveitava o relativo grau de liberdade que me permitia o assalariamento.

Meus amigos eram ligados a mim desde antes, no interior se é amigo de quem não se tem afinidades, mas que se cresceu junto. No entanto, demandam presença, justamente o que me era impossível. Após isto, só pude construir relações de afinidade ou paquerar garotas após assalariamento, neste grau de liberdade permitido pelo consumo, no entanto, o fato de eu trabalhar em turnos com folgas variadas que não caíam no fim de semana, me distanciavam de meus antigos colegas me ligando a outros.

Quando finalmente consegui ter dinheiro para ir para os shows de bandas interessantes do nascente cenário de rock alternativo da época me vi distanciado das datas. Meus turnos eram das seis da manhã às duas da tarde por cinco dias, folga de cinco dias, das duas as dez durante cinco dias, folga de dois dias, das dez às seis durante cinco dias, folga de três dias.

Acreditem ou não raras vezes coincidia com o fim de semana, o que, no interior, me fazia distante dos horários de lazer de meus outros amigos, ocupados em sub-empregos urbanos e tentando passar no vestibular, um ou outro metalúrgico, segurança, ou universitários. Normalmente, para acompanhá-los eu sacrificava meu sono em dias que iria trabalhar direto de manhã, ou outros, afinal a pouca idade permite coisas incríveis e saídos do colégio, achamos que podemos tudo.

Eu achava muito injusto aquele mundo, é claro, vindo já de formação política incipiente, sentia como se o tempo fosse roubado, e este era o preço de poder viver razoavelmente bem, como dizia uma moça que fiquei na época e que havia sido por um tempo prostituta e posteriormente voltou a ser sem que as outras pessoas com quem convivesse soubessem ou fossem ligadas a este mundo: “viver na classe média tem um preço diferente para cada pessoa”.

O caminho do excesso era o que parecia razoável quando entrava no fim de semana, e tive experiências fortes com o que pudesse me aliviar, falemos disto noutro local, sobre o que alivia a tragédia dos sentidos e que sempre achei algo bem ligado ao trabalho. Manter o ritmo da produção e da vida externa à fábrica para alguém mais velho exigia muito e por isto via muitos usuários de drogas, algo sem dúvida, no caso dos estimulantes, ligado à atenção necessária para o trabalho à noite.

RELIGIÃO DO TRABALHO

Outros, muito puros, não usavam, como um mineiro muito esforçado e religioso do trabalho, destes que mesmo sem fé acreditavam numa redenção moral pelo trabalho.

Estava passando no ponto de descarga de uréia e ouvi um gemido. Após esse som, ouvi um pedido de socorro abafado, quando vi, notei que era o mineirinho atleticano caído sem se mexer como uma tartaruga virada de casco para baixo, fui até ele e o tirei de lá.

No ápice de um pico de produtividade ele estava lá em seu esforço hercúleo por algum bem etéreo, pois seu salário era como o dos demais, mas diríamos que seu emprego seria mais estável neste período, o que também é incerto, mas o fato é que acreditava no que fazia até que caiu um dia no chão com a coluna travada. Seria apenas um descanso forçado pelo corpo exausto não fosse ao lado de um ponto de descarga de vapor que diluiria a uréia.

Se não o tirasse de lá partes suas com certeza se diluiriam na uréia. Ele nunca parou de se esforçar tanto quanto sempre o fez. Aquilo não significou nada para ele.

Lembro que sempre brigou comigo, pois eu nunca “vestia a camisa da empresa”, talvez tenha ouvido sobre a tentativa incipiente de tentar levantar o sindicato contra a gestão vigente que participou do “acordo” na empresa anterior que acabou resultando na demissão de metade de todo o setor de produção da fábrica. A tentativa acabou mal, com demitidos e ameaças de morte, consegui, por ser novato e ter bons conhecimentos de processos uma indicação que me valeu aquele emprego, o que me foi útil depois da tentativa infrutífera de começar meu primeiro curso de graduação. Mas pensando bem, talvez ele não tenha ouvido falar de nada daquilo.

O fato é que eu continuava preso àquele cotidiano macabro, afinal, as senhoras querendo mudar seus cabelos continuaram a fazer escova progressiva com formaldeído, assim como os móveis de compensado continuam a constituir os ambientes domésticos das famílias de baixa renda.

No entanto, nada disto me importava, pois tudo parecia dar errado na minha vida naquele momento e o formol me ardia nas narinas.