segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O 5 S

A mudança das condições de trabalho leva à mudança dos modelos administrativos Maurício Tragtenberg

A PALESTRA SOBRE 5 S

Fui um jovem em 1996, mas já não me sentia em 1999, no meu último dentro da primeira fábrica que trabalhei como operador de produção. Antes eu me consideraria livre em qualquer lugar onde estivesse, simplesmente porque, mesmo que prendessem meu corpo ou o destruíssem, minha mente poderia se libertar para pensar um outro lugar possível negando minha limitação e desafiando a hierarquia. Mais tarde soube o quanto estava enganado.


Como plano alternativo, eu pensava que conseguiria sair do trabalho e me liberar de suas amarras no fim do expediente, o que igualmente era um equívoco pois o processo de trabalho restringe a mente do trabalhador e obriga a organizar o tempo que seria fora. Essa era uma das principais funções das dinâmicas de gestão organizacional da empresa, entre os quais, o 5 S.


Eu participava de uma palestra sobre gestão do trabalho, destas chateações que sempre acompanham as empresas multi-nacionais, mas aquela era diferente, pois não era só para mim, o novato, mas todos os funcionários fariam aquele treinamento que findaria em dinâmicas de grupo. É claro que para mim era interessante pois, não só poderia matar parte do expediente no treinamento no setor ao qual seria direcionado, o tratamento de efluentes agudamete tóxicos (ou esgoto industrial para os íntimos), como também aquela seção de lenga-lenga reuniria vários dos funcionários que eu passaria a conhecer.


Era difícil conhecer todo mundo de cara, primeiro pelo tamanho da fábrica, uma indústria química de grande porte, segundo, porque cada setor era de um processo distinto, que por sua vez era de um ramo de negócios que pertencia a um país diferente. A empresa se dividia fisicamente entre as partes em que era dividida a propriedade de seus títulos pelas ações, ou seja, era uma empresa com controladores, mas cuja posse era partilhada entre acionistas.


Na época, para mim, isto era quase incompreensível, mas o meu setor deveria conhecer toda a empresa, pois fazíamos a água que gerava tanto o vapor que todos utilizavam quanto a água para combate a incêndios (então recorrentes) e também porque era para nós que viriam as “buxas”, os problemas de todos os setores enviados no ralo para o esgoto e, acreditem, eram muitos: produtos explosivos, corrosivos, tóxicos, etc, com que deveríamos lidar e para isso pensar e agir rápido em casos os mais diversos utilizando toda a química e física presente em nossas cabeças, assim como, na medida do possível, experiência e calma.


E estávamos nós lá falando de qualidade total e toda a empresa passava por este tipo de lenga-lenga e reciclagem. Porquê? Bem, eu não sabia, pois a empresa não tinha baixos níveis de produção, nem tinha concorrência, assim como praticamente tudo o que produzia era exportado, porquê se preocupavam? Aliás, nenhum país permitiu que a empresa fosse implantada em seu território, somente o Brasil, e nenhuma cidade quis se arriscar, senão aquela em que estava, logo, porquê aumentar mais ainda o lucro absurdo que possuíam? Só havia um sindicato patronal na cidade inteira, aliás, a coisa mais próxima da esquerda por ali era o sindicato dos bancários, da CUT, que nem dava bola para os químicos do lado B do inferno.


Todo o falatório dizia respeito ao aumento de produção possibilitado pela dita “qualidade total assegurada” e certificados ISO. Mas que diabos de qualidade era essa, que clientes eram esses, se só produzíamos produtos de base de outros produtos que nem sabíamos quais eram? A coisa continuava e continuava. Fiquei sabendo que o rapaz que falava e que devia ter minha idade hoje, uns trinta, tinha uma história ligada à empresa, ele tinha sido Ofice boy, depois fez administração e se tornou deste setor de “Qualidade”, um sonho de ascensão a ser mostrado aos demais empregados (mas um dos primeiros posteriormente a ser demitido) e sempre mostrado pelos chefes. No entanto, o office boy só conhecia o administrativo e nunca tinha conhecido o chão de fábrica.


Ele estava vivamente entusiasmado, parecia que um projeto de vida se juntou a um projeto produtivo. Mas num determinado momento me incomodei, não só com sua alegria, pois nós, os peões de fábrica, sempre ríamos zombando de algo ou de alguém, normalmente do administrativo, chefe, encarregado, uma piada machista, ou algo assim. Então ele abriu para perguntas e eu perguntei: “- O senhor está dizendo que o mal funcionamento de qualquer coisa que acontece na fábrica é sempre culpa do peão ? É o fato dele ser mal organizado e não assimilar esse tal “espírito da empresa” que ele compromete a produção ? Não é falta de equipamento e condições propícias, veja o meu setor por exemplo (...)”


E continuei como diz um amigo, jogando “areia no chantilly” dele, mas ele era muito simpático e de bom jogo de cintura. Pense bem no que ele passou para subir até ali. Ele não era como os outros malas antipáticos do administrativo, nem era nojento e nem se vestia bem. E aposto que ele não tinha plena ciência do que se passaria, apenas o sutil véu de ideologia no seu aspecto mais doce. Foi assim que ele nos apresentou cinco palavras japonesas que remetiam à formas de organização do local de trabalho num tipo de regra universal que teria funcionado como uma “cornucópia” no Japão permitindo maravilhas inauditas na produção e que seria aquilo que seria colocado em prática naquele local.


VISITAS AOS OUTROS SETORES

Passei a conhecer melhor meus colegas de trabalho e a “passear” nos turnos noturnos onde tudo era deserto e a fábrica ainda apresentava à noite certo encanto cyber-punk. Via a intimidade dos colegas e encontrava com ex-colegas de colégio técnico, como um amigo que tinha me dado aquela chance de emprego e que via o local cada vez com melhores olhos, isto é, passava do olhar do peão ao do técnico, enquanto eu ia no sentido contrário.

Era interessante notar como às vezes no meio da mais alta tecnologia a quantidade de variáveis dá margem à modelos ultra-caóticos e certa autonomia do trabalho intuitivo frente ao técnico. Semi-entendido, eu olhava a planta e ria, pois passava do interesse da química (que deixava de ser curiosidade científica para virar trabalho) para a física e pensava que fórmula calcularia a quantidade de variáveis que estão presentes no setor: válvulas semi-entupidas, condutores com defeitos, leitores com desajustes, etc, etc, quem, senão o peão no chão de fábrica, conseguiria ajustar a idéia do engenheiro ao que acontece de fato ?

O peão que cheira o tanque e nota que algo está errado, ou que um phmetro está levemente errado pela turbidez, o barulho do tubo que diria respeito à quantidade de vapor que passa ? Enfim, mesmo no meio daquele inferno, eu acreditava confiante que o homem ainda tinha controle sobre o técnico superior.

E quando o engenheiro vinha com um novo processo ? Aí o engenheiro novo vem, depois nada dá certo, então chega o velho peão, para pensar junto o que estava errado, ele mexe e pergunta ao velho: o que você fez exatamente ? E ele: eu apenas sei que quando este duto está chacoalhando (que a princípio é um defeito) é a hora de descarregar. Eu via certa ironia nisso.

O setor de alguém também era interessante. O lugar mais memorável era o de Peróxido Orgânico. Produto que à zero grau é altamente inflamável e que à temperatura ambiente explode (que está mais presente na nosa vida do que imaginamos, pois faz o acrílico de nossos óculos). Lá havia o seu Silva que não havia entendido nada do que era o 5 S, simplesmente achava que era para serem organizados, coisa que ele já era. Ele que era um dos mais assíduos, retos e produtivos trabalhadores e que fazia horas extras como ninguém.

O seu “canto” era um charme. Foto da filha, da mulher, quase um escritório de papai, como são os do administrativo com os manuais técnicos arrumados de um modo muito charmoso, não era a toa que as mulheres da limpeza, únicas obrigadas a se aventurar conosco nos cafundós perigosos da fábrica, se amarravam tanto nele. Era como se algo dele, de sua subjetividade, estivesse ali, apesar de tamanho sacrifício pessoal e tantas horas ali dentro.

Eu não tinha dessas, nunca me dei com minha família e eles só queriam a grana no final do mês. Conversava com meu único amigo lá, que era pai, e que podia lembrar e rir, sair, conhecer outras químicas e sair com o pessoal. Naquela altura, sem muitas perspectivas de entrar direto na faculdade, pois em três turnos que se revezavam, não dava pra pensar em faculdade, nem nos amigos de sempre, pois meus turnos muitas vezes faziam cair as folgas no meio da semana em pleno interior do estado, onde não há nada para fazer.

No afã de liberdade eu bebia e me entorpecia com outras químicas para tentar esquecer do perigo constante da fábrica e da tristeza daquele local. Progressivamente, mudei de amigos, mantendo alguns da fábrica e outros adictos malucos com quem passeava por aí. Amizades químicas que também se estragavam pela noite quando eu não estava na noite na fábrica. Eu sobrevivia de acidentes na fábrica para propositalmente cair neles fora e esquecer que eu voltaria para lá. Só por algumas noites.

A PROPOSTA

Uma vez o encarregado (encarregados nunca são boas pessoas e sempre remetem ao capitão do mato) me apareceu como um Mefistófeles industrial e me fez a proposta: “- Quer trabalhar em um horário fixo para poder fazer curso superior ?” Eu tinha 18 anos, mas tinha todos os motivos do mundo para imaginar que aquela cobra tinha algo de ruim para me ofecerer.

Era notório que eu estudava, pois qualquer instante livre eu utilizava para isso, como o horário de almoço. Além disso, este foi um motivo de um desentendimento certa vez, pois ele insistia em deixar meu setor com um único funcionário e quase fui punido justamente por fazer minha hora de almoço. Isto é, estando ausente eu era responsável pelo que acontecesse no meu setor, e almoçando, eu estava ausente.

A fábrica quer sempre te engajar totalmente e mobilizá-lo como um recurso totalmente à disposição. Como a matéria prima que se aprende a utilizar e reciclar sem desperdiçar nada. E é quase impossível dribá-la. Assim, era um pesadelo eles saberem meu telefone, pois como eu era solteiro, eu era sempre um alvo de horas extras, que eram praticamente exigidas. Eu ficava irado enquanto eles também ficavam irados, ficavam como que aturdidos com minha ira. Era como se quisessem te dobrar inteiro e se qualquer resitência subjetiva fosse notada, era combatida até encontrarem algo com que te dobrar. Este era o motivo daquele mefistófeles, muito mal, apesar de possuir uma pitoresca tatuagem mal-feita de borboleta no ombro esquerdo (era difícil não rir, e ai de mim se o fizesse).

Enfim, com toda a concentração para ser educado e interessado, pois a proposta me interessava, eu perguntei sobre o que eu precisava fazer. E ele disse que eu apenas deveria concorrer pela única vaga de técnico que eles tinham, uma vaga técnico que abriria a chance inclusive da empresa pagar a metade do curso que eu fisesse (caso fosse particular e eu nunca achei que passasse em qualquer curso na USP). Falei legal, com quem eu teria de competir ? E ele respondeu “- Com o César” Isto é, com meu amigo do colégio que indicou a vaga que ocupava e, acima de tudo, era pai.

Vocês me desculpem, mas eu pensei no caso por um dia. Por um dia não tive princípios e, diziam, o que acho equívoco, pois não o conheciam o César, nem seu potencial de trabalho, que eu passaria. Mas, para isso, eu teria de entrar de verdade na empresa, no espírito de competição e mais, na ilusão de que o único modo de se libertar era por dentro do sistema hierárquico da corporação. E era isso o que queriam. É estranho notar que nosso caso de amizade era observado e espionado, afinal, qualquer sinal de alteridade era um não controle que a empresa observaria de perto e nada, repito, nada escapava.

Seja o flerte que alguém tivesse com a estagiária de engenharia química que era “protegida”do chefe, ou alguém que não visse a proximidade do gerente que se colocava como cidadão comum para com o peão (contra o encarregado direto que é sempre mal) como algo positivo. Tudo o que desafiasse a fantasia de ascensão e a idéia de que qualquer um, caso estivesse na posição social do chefe, seria exatamente igual à ele e que, enquanto não é, desejava sê-lo sempre. Do mesmo modo como qualquer um desejaria exercer suas violências e poder consumir o que consumisse, assim como ser visto como poderoso, alguém que não depende dos outros como o trabalhador subalterno. Trabalho que em si mesmo seria visto como uma dádiva.

No caso da fábrica, trabalhar durante o horário diurno e ser um técnico colocava outra característica, permitia comer no mesmo restaurante que os demais sem aquilo que nos distinguia: um uniforme branco que separava os trabalhadores do setor produtivo dos demais trabalhadores, mesmo subalternos do administrativo, mas também dos engenheiros e técnicos que, mesmo frequentando os mesmos locais de trabalho, podiam utilizar suas roupas normais. Ou seja, outras pessoas olhariam no seu rosto sem desviar.

Tive força ao menos de não negar tal proposta em silêncio e dizê-la em alto e bom som ao encarregado o que garantiu, até o fim de minha jornada naquele local fabril, os olhos mais pesados olhos da chefia me obrigando a um delicado equilíbrio enquanto lá durasse, mesmo como técnico especializado. De qualquer modo, era melhor manter qualquer valor subjetivo, como um coisa não roubada, pois os ventos mudavam inevitavelmente para não haver mais esta chance de negação que ainda pude dar ao recusar interiorizar os valores daquele mundo totalitário e doentil.

A VISITA DA QUALIDADE AOS SETORES: O 5S EM PRÁTICA

Até hoje aquela palestra é incompreensível. São cinco palavras que se relacionam com qualqeur aspecto do cotidiano tanto como qualquer princípio oriental de condutas. Sintetizo do seguinte modo: são mensagens abstratas que não indicam condutas normativas, mas são abertas à interpertação, nestes casos, o processo de interpretação é o que conta, uma conduta que depende de alguém que interpreta.

Muitas vezes um texto que descreve uma norma pode ser utlizado de dois lados. Por quem manda e por quem é mandado, basta que seja claro o suficiente e prescritivo para que permita a interpretação daquele que é mandado e este acredite que aquele que manda igualmente deva obedecê-lo. Isto limitaria a ação de quem manda e restringiria a sua soberania sobre a interpretação de uma dada situação. Nada disso vale para estes princípios de inspiração oriental que vão desde as leituras empresariais do Sun Tzu quanto à leitura do livro vermelho do Mao Zedong pelo atual PC chinês.

Quando eles estão em ação, somente um intérprete iniciado pode explicá-los e então você só se dará conta se está ou não dentro daqueles preceitos quando postos em prática pela autoridade autorizada neste preceito.

Seu Silva mantinha muito organizado seu setor e, por isso, sempre imaginou estar seguindo o 5 S, mas não estava. O 5 S não seria interpretado por ele, mero peão. Não senhor. Ele só poderia saber se estava ou não sendo aplicado quando o engenheiro fosse até o local de trabalho, obervasse o setor e concluísse sobre o que estava errado. As fotos de crianças então foram removidas como qualquer outra lembrança pessoal dele sendo todo o setor rearranjado num padrão a ser aprendido por todos, inclusive por ele, que parecia, aparentemente, totalmente integrado, o que valeria igualmente para a organização dos manuais, disposições, processos, etc. Tudo deveria parecer impessoal e determinado por um outro, o engenheiro de processo.

Não importa se observássemos os trabalhadores europeus em fotos de exemplo nos slides que vinham prontos da empresa matriz e nos deparássemos incrivelmente (eu juro) com setores mais desorganizados e sujos que os nossos em produtos muito mais simples de lidar. Ora, tudo isso estaria sendo lido errado, assim como tudo se passaria por uma forma de organização diária do processo de trabalho em que o engenheiro acessaria e racionalizaria o “geitinho” do trabalhador, impedindo o mínimo de espaço de autonomia sobre o processo produtivo e, mais ainda, evitando qualquer pausa não regularizada e associativa.

Estagiários de engenharia igualmente nos fiscalizariam no turno da noite, assim como seriam dispensados os que não dessem índices de delação. Sem qualquer forma de solidariedade entre tipos de trabalhadores, que se cuidassem igualmente os laboratoristas que deveriam estar de plantão toda a noite e seriam testados periodicamente de modo secreto. Não surpreende, igualmente, que finalmente o sistema foi inteiramente implantado e nem que, seis meses depois, metade da fábrica fosse sumariamente demitida, assim como eu e alguns colegas, estivéssemos no topo da lista, principalmente por conversarmos sobre oposição à direção sindical.

Hoje compreendo melhor, mas não totalmente, o que é 5 S. Isto só melhora quando associo a outras palavras que fazem mais sentido quando pensamos com a cabeça do gestor, just in time, isto é, produção sem estoques e toyotismo. Só não compreendo exatamente como meu amigo citado, aquele César, é hoje o gerente daquela fábrica que tanto pegou fogo e tanta gente atormentou.

Estas terríveis mutações sociais podem ser compreendidas por quem lê o que Marx descreveu como a passagem da subsunção formal à subsunção real, contidas no livro I d`O Capital (capítulos XI ao XIII) que até hoje me intrigam por terem um peso real na vida, isto é, quando o processo inteiro de trabalho é programado pelo Capital até a subjetividade, tornado o homem um ser tão plástico como a matéria prima, e ainda mais porquê, por algumas horas, eu vi que a força de sua ideologia propulsora não repousa apenas sobre a abstração.

Para desespero pessoal, foi triste notar que quase capitulei tentando libertar minha subjetividade da concretude da fábrica apenas para, neste processo, condenar a de outro. Libertação que, no final das contas, teria resultado tão ilusória quanto foi a de meu amigo e quanto é hoje, sozinho, ter conseguido finalmente abandonar aquele mundo maldito de gases e sombras que deveria deixar de existir para sempre, ou mesmo o espectro que acompanhava aqueles que foram “liberados”, ou melhor, demitidos enquanto os que ainda lá ficam trabalham em um mundo cada vez mais totalitário e enlouquecedor, com ainda menos espaço de folga.

publicado inicialmente em Passa Palavra

2 comentários:

Vinicius Marques disse...

Ô, Douglas, incrível seu blog!

É difícil falar que ele é bonito, porque as coisas que vc conta são terríveis. Mas tem algo de subjetividade não distorcida na maneira como vc se lembra do que aconteceu, entremeia no relato principal outros detalhes, etc. Enfim, é paradoxal, mas quando o texto se compraz em extrair com urgência algum sentido daquele horror, alguma coisa de ordenado e humano aparece, algo que resiste à força da desumanização.

Aliás, li aquele post em que te dirigiam críticas sobre o tom autocomplacente. É verdade, tem um pouco disso nos relatos. Mas não acho que essa atitude seja um problema. Principalmente, porque a complacência não é predominante. Afinal, há muitos outros tons nos seus textos, como a alegria com as descobertas de infância, a asfixia com a situação de vigilância total, o sarcasmo com a burrice e a brutalidade dos outros, a revolta pela maneira como te trataram que nem bicho na ocasião do seu acidente, a vontade desamparada de ir contra aquilo e não poder. E às vezes até certo sadismo que, pensado junto com o que é relatado, não tem nada de vicissitude pessoal, é como a transposição da violência para as imagens e os processos químicos.
Tudo isso, norteado por uma intenção de compreender, confere à complacência o estatuto de um mero estado de espírito no momento do relato. E como ele é integrado à narrativa, isso não compromete o quadro geral.

Outro detalhe. Especialmente interessantes são os posts em que você começa falado sobre um composto ou uma máquina e vai aos poucos desfiando as experiências que vc viveu na fábrica. Dá pra ver aí duas coisas: tanto uma luta da sua parte por partir da aparência das coisas e chegar ao seu conteúdo humano, feito de relações reais - coisa incontornável no mundo da mercadoria; mas também a maneira como você, na sua história de vida, fez isso, ou seja, partindo do seu encanto quase científico pela composição concreta da matéria.

Esse é um dado que permite imaginar como surgiu seu interesse por filosofia política. Quando era criança, você encontrou na química um olhar distanciado para enxergar de perto como as coisas são feitas. E então queria agir sobre elas, transformá-las, lidar com elas. Depois de viver na fábrica, isto é, experienciar toda a podridão em que deu exatamente o mesmo bom sentimento que você teve quando das suas descobertas, ir para o questionamento da função política da técnica é quase uma consequência lógica, se não fosse algo que "compõe" você (e, no caso, esse narrador), seu verdadeiro impulso de autodeterminação.

Enfim, teu blog é foda. Queria ler mais posts, mas pelo jeito vc deu uma parada. Sei lá, se ele voltar a ser importante pra vc, continue a escrever, pois a coisa interessa a muita gente.

Parabéns e um abraço!

Vinicius Marques disse...
Este comentário foi removido pelo autor.