terça-feira, 9 de dezembro de 2008

AMACIANTE DE ROUPAS

OS ENCANTOS DO AMACIANTE

Enquanto minha mãe lavava roupas, eu adorava notar os efeitos das substâncias de limpeza, como as lagartixas que acidentalmente (mesmo, juro que não era eu, adoro lagartixas) caíam no balde com cândida (Hipoclorito de Sódio, NaClO) e se tornavam esqueletos limpinhos.

Mas os amaciantes de roupas sempre me intrigaram: o que diabos era afinal aquela substância?

A promessa do fabricante era fisicamente instigante se pensarmos bem, isto é, modificariam-se as fibras do tecido fazendo-as deslizar mais suavemente quando em contato com outros corpos, reduzindo seu atrito com a superfície de contato, quer dizer, ao menos é o que prometem. Há até um teste físico que se pode fazer para poder comprová-lo bem simples. Mas o fato é que colocam naquela bela imagem de candura e fofolência publicitária vários bichinhos de pelúcia, coisas fofas em geral, filhotes e bebês humanos. Ah, que gracinha de se ver!

Lembro das criancinhas com aqueles panos de que não desgrudavam nunca, como o Lino do Snoopy , aquele mesmo paninho sempre fofo que se colocava na boca das crianças desde pequenas e, antes mesmo de terem consciência disso, suas mães usavam aquele paninho constantemente lavado para limpar a baba de suas bocas e outras melecas. Enfim, quando limpos substituíam para muitos até animais de pelúcia. Penso que muito disto se devia ao amaciante de roupas.

Ao dosarmos sua medida para lavar roupas, notamos suas propriedades organolépticas. É de cheiro agradável, é como um lodo simpático que gruda na mão e precisa ser bem lavado para ser desgrudado.

Quando cheguei à indústria descobri o produto que lhe dava estas propriedades, eram duas substâncias gosmentas. Cada parte diluída em 15 outras partes de água somada à uma essência sintética de boa qualidade geraria o amaciante que conhecemos.

Se levasse para minha mãe um copo, renderia todo um litro de amaciante, mas o mais interessante era pensar em como se fazia este tal produto.

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE AMACIANTE

Haviam tanques gigantescos borbulhantes, algo como um cenário de filme de terror. No turno da noite, era quase bonito subir nas torres enormes, em plataformas de quatro e cinco andares com o piso gradeado de onde se via o chão enquanto se sentia a constante vibração das máquinas.

As máquinas falavam à noite entre si por quantidades infinitas de tubos que levavam e traziam substâncias químicas, vapor, óleo térmico e efluente. Por cima, por baixo, pelos lados, nada parecia indicar a passagem humana nestas paisagens desoladas de universos cyberpunk que poderiam ser projetadas por Philip K. Dick. Amigos da cidade e jogadores de RPG às vezes me davam uma carona para o trabalho e se impressionavam com aquela paisagem desoladora à noite. Ninguém entendia como conseguia trabalhar naquele lugar, ainda mais quando dizia que meu setor era isolado entre um trecho de mata desgraçada pela nossa presença química com o rio poluído nos fundos.

Vapores eram espelidos e máquinas faziam barulhos em ritmos sincopados. Contratempo de pulsações maquinais, cheiros os mais estranhos, exalados pelo vapor, mas nada pareceria mais estranho que o gigantesco tanque ao lado do setor de utilidades industriais que de vez em quando soltava um cheiro desagradável de sopa de carne sem tempero.

Era um gigantesco tanque que vagarosamente desprendia a gordura da carne recebendo restos de animais mortos. Parecia mais um serviço de reciclagem de lixo. Os restos sólidos desta papa infernal eram incinerados numa gigantesca torre do tamanho da torre da praça do relógio da USP. Mas aquela papa escondia um processo físico-químico bem mais sutil, por mais horripilante que parecesse.

Ao subir no tanque era necessário ver o nível daquela gordura para saber se ela estava sendo devidamente drenada. Antes que pense nisso, sim, já havia transbordado várias vezes por causa de problemas com as bombas: aquela gordurada melequenta era bem pesada e densa, exigindo bastante das máquinas que a bombeavam. Todas as vezes em que subi neste tanque tendo de observar seu nível era tradicional trazer uma contribuição de dentro do meu estômago àquela sopa nojenta - mas jamais subiria lá depois da refeição. Jamais.

Um dia o incinerador gigante de restos sólidos de animais mortos formou uma crosta.

INCÊNDIO NO REINO DA FOFURA

Esta crosta espessa se tornou algo como um “carvão” duro que um dia atingiu seu ponto de combustão. Para além da ponta do bocal do incinerador uma chama vermelha de seis metros de altura lançava gases escuros que enegreceram o dia. Isto tudo aconteceu numa tarde de segunda feira pouco antes da minha entrada em folga, algo como quinze minutos antes de trocar o turno, o que resultou no fato de que o próximo turno não entraria, além de meu mais profundo aborrecimento com aquele gigantesco tanque de gosma.

Quando ouvi o ruído do alarme de incêndio que se parece com uma buzina de caminhão tocando dois toques longos seguidos (se contínuo significa corra por suas vidas), assustei, mas subi para o ponto de encontro da brigada de incêndio da qual éramos obrigados a participar . Não era difícil perceber o céu se tornando escuro e uma labareda infernal saindo do tubo.

Chegando no ponto de encontro eu, que era um novato naquele tempo, e os demais escutávamos o que se passava. Depois caminhamos da caixa de água gigante que guardava a água que tratávamos do rio poluído que passava ao lado da empresa para processo industrial e combate à incêndio até chegarmos à proximidade do incinerador. Ali, finalmente nos demos conta do ocorrido.

Primeiro problema: O combustível que alimentava a chama do incinerador foi cortado, mesmo assim, a labareta insistia em permanecer onde estava. Segundo problema: passava ao lado do incinerador a tubulação de gás Hidrogênio, agudamente inflamável ao lado do incinerador, o que foi resolvido cortando-o. Terceiro problema: entre o administrativo e o incinerador havia um tanque de gás Amônia (NH3), na parte de trás do incinerador era o setor de peróxido orgânico, que trabalhava refrigerado a dez graus negativo, pois a zero grau era agudamente inflamável e à temperatura ambiente era explosivo, ao lado deste setor, ficava o setor que lidava com Arsênio, aí conheceríamos o Chernobyll brasileiro. Quarto problema: parafusos que prendiam a estrutura do incinerador voavam como balas soltando estampidos metálicos quando atingiam outros tanques. Quinto problema e mais grave problema: estava de saco cheio e meu chefe desconfiava de mim.

Pensei no caso de que se jogássemos água, os metais hiperaquecidos da torre rasgariam como folhas molhadas e lançariam fogo por toda a parte. O máximo que poderíamos fazer era morrer ou fugir até chegar os bombeiros. Tinha máscaras de fuga, sabia por onde correr conforme a direção do vendo na expectativa de gases tóxicos (sempre na perpendicular à direção dos gases), mas nada disso adiantaria contra o fogo direto contra nossos corpos entre substâncias químicas tóxicas e explosivas.

Enfim, conheci lições profundas como a pequenês humana, a efemeridade da existência sob o medo e as potências da natureza que só superficialmente são domesticadas pelo homem. Nada daquilo fazia sentido, passei a ter medo da química, destas moléculas, mesmo as inofensivas como as de gordura guardavam em seu interior uma força descomunal, o que provavam com todo aquele problema. Nunca contáramos com o potencial destrutivo de placas queimadas de gordura. Mas, para quê aquilo, afinal?

A FABRICAÇÃO DO AMACIANTE

Pois é, o que se fazia lá com esta gordura era torná-la uma longa molécula maior ainda de gordura, um gigantesco ácido graxo que reagiria com soda cáustica produzindo uma grande molécula gosmenta de sabão que simplesmente era a base do amaciante de roupas. E antes que se tenha dúvidas, todas as marcas de amaciante compravam esta matéria prima nojenta com que se diluía em diferentes doses de água e essência produzindo o amaciante de roupas, ou melhor, todas as marcas de amaciante de roupas.

Me perguntava sempre, eu que era vegetariano na época, se os demais sabiam disso...

3 comentários:

zecalixto disse...

nossa, muito bom o relato.
relatos de dias ferventes...
nunca mais uso amaciante.

Léo disse...

muito bom douglas! parece que a sua alegada dislexia é só com textos acadêmicos, porque está muito bem escrito. boa literatura. continue escrevendo!

Anônimo disse...

Q.horror nunca imaginava isso!!