terça-feira, 9 de dezembro de 2008

EIS A CALDEIRA


Uma caldeira flamotubular bem limpinha – coisa típica e exclusiva de propaganda da empresa.

INICIAÇÃO À CALDERARIA

Por falta de uma definição melhor, uma caldeira é uma gigantesca panela de pressão. Ela aquece a água usada em processos, seja como condutora de calor, seja como condutora de águas para reações químicas. Ela está presente nos navios, fazendo mover as hélices, nos hospitais e restaurantes lavando louças e roupas, nas fábricas movendo rotores em termoelétricas.

Ela consome grandes quantidades de óleo fóssil a baixo ponto de fusão e quando queimada deve produzir uma chama levemente azul o que garante que está havendo óxido-redução de todo o carbono em dióxido de carbono C02 e evitando a fumaça preta que garante que resíduos sólidos (fuligem e fumos em geral) líquidos (óleos aquecidos em micro-partículas) e principalmente monóxido de carbono C0 sejam lançados à atmosfera. Ela demanda atenção constante e deve operar “tranqüila” em condições eminentemente normais.

Ela dá o tempo da fábrica. Numa greve, por exemplo, se o setor de utilidades industriais pára e a caldeira é lacrada, simplesmente toda a produção é parada e por causa disso, o setor de utilidades industriais ou é de extrema confiança ou é vigiado e assediado politicamente o tempo todo, talvez seja por isso que ficavam tanto no meu pé.

Deve-se observar sua chama interna, seu consumo de óleo quente e a entrada de água tratada sem dureza, isto é, sem sais metálicos que ao ser aquecidos solidifiquem no seu interior.

PRA FRENTE A TODO VAPOR

Sabendo como são acidentes com panelas de pressão, imagine o que seria explodir uma panela de pressão do tamanho de uma casa. Sempre pensei nisso e as fotos que vi me deixaram assustado o suficiente para respeitá-la. O calor é muito maior na metalurgia e na siderurgia, é claro, a fuligem, muito pior nas minas, mas uma caldeira não é um objeto simpático e se aquecida sem água geraria uma onda de impacto muito violento, pois trabalha sob extrema pressão. Vulcano e Netuno se agitam em seu interior sem se entenderem.

Explosões de caldeira são constantes e muito ligadas ao tratamento da água, na época, minha especialidade, evitando entupimentos. Na outra fábrica estava muito distante de um objeto destes, ainda que mais próximo de coisas mais perigosas.

No entanto, vazamentos de vapor eram coisa pouca naquela fábrica, como chamavam carinhosamente os peões, "boca de porco" dadas as substâncias resinosas com que se trabalhava resultando num aspecto de sujeira constante. Além disso, o aspecto da área em que fica a caldeira é sempre envolto em óleo.

ADAPTAÇÃO TÉCNICA, GAMBIARRA

Nós ali éramos obrigados a lidar com aquilo e, na disciplina da fábrica, as coisas tem que ser feitas não importa como. Não importando se não havia, por exemplo, válvulas próprias para ligar as mangueiras num duto de vapor o que gerava problemas.

Pelo fato da fábrica ser ao lado de uma rodovia num ponto elevado, muitas vezes ouvíamos barulhos de explosão, que, para nosso alívio, eram pneus de caminhão estourando, de onde despregavam-se as câmaras se tornando estas parte dos isolamentos e ligações de mangueiras de vapor que usávamos.

Os engenheiros chamavam isto, quando eles faziam, de adaptações técnicas provisórias e quando nós fazíamos, gambiarra, era toda uma filosofia de vida e do trabalho. Era capaz de gambiarras as mais improvisadas e surpreendentes que envolviam tudo o que sabia de física e química. O importante é sempre manter o fluxo contínuo da produção.

Mas a da mangueira, que não foi feita por mim, um dia falhou e soltou-se atrás de minha perna esquerda.

COMPANHIA INDESEJÁVEL

A dor foi imediata e lembrei dela por anos em todo detalhe. Aliás, por três anos seguidos até tornar-se mais raro. Acordava à noite num susto ou pouco antes de dormir, ficava endireitado com o corpo rijo, com palpitação e suado.

Desde aquele momento o que fica na memória é a dor que foi minha acompanhante por meses seguidos, mas tentarei lembrar dos outros detalhes do momento.

Pensando sobre isto hoje, vejo como é difícil descrever isso para quem não sentiu a dor de queimaduras graves. Junto com muitas outras, uma jovem vietnamita foi incendiada por bombas de Napalm, produto feito de sais de Alumínio co-precipitados dos ácidos Nafténico e Palmítico, e hoje Benzeno e Poliestireno produzidos comercialmente pela Dow Chemicals, como bem mostrou Harum Farocki no filme o “Fogo que nunca apaga”, os trabalhadores, engenheiros e químicos da empresa eram completamente alienados dos seus usos, seria o meu caso?

Mas Thai Bihn Dahn conseguiu colocar isso muito bem no tribunal dos crimes de guerra em Estocolmo em 1966 quanto em frente aos cínicos: “Como podemos mostrar-lhe napalm em ação? E como é que podemos mostrar-lhe as lesões causadas pelo napalm? Se nós lhe mostrarmos fotos de queimaduras de napalm, você fechará os olhos. Primeiro, você fecha os olhos para as fotos. Então você fecha os olhos para a memória. Então você fecha os olhos aos fatos. Então você fecha os olhos a todo o contexto.

DEBRIDAMENTO

Sinto-me extremamente impotente em falar do que é ser jogado inadvertidamente numa situação desta. A intenção não é ferir você também, só porquê eu fui ferido, mas tentar dividir esta situação incômoda que se repete para outros e expelí-la do incômodo silencioso, então, tentemos de outro modo. Era um dia de sol sem problemas quando aconteceu...

Na seqüência, fechei a válvula de vapor, após cair por alguns minutos no chão, pois isto era vital, se caldeira secasse, como expliquei, explodiríamos, mas como consegui fazê-lo com tamanha dor, isto eu não sei. Joguei água fria, o que aliviou imediatamente e manquei até o setor dos painéis.
De lá chamaram o rapaz que era socorrista. Era um feriado e não havia qualquer tipo de enfermeiro, apenas um rapaz igualmente peão como eu, mas com treinamento e liberdade de usar a antiga Caravan-ambulância.

Ao chegar até mim, o rapaz cortou minha calça o que produziu uma dor aguda. A gordura de minha pele derreteu-se e minha pele era uma folha solta com a calça grudando em algumas partes. O rapaz ficou enjoado e não lembro se vomitou ou se apenas ameaçou vomitar, isto não importa, o fato é que sua expressão me assustou a respeito do que me esperava.

Perguntei se era grave, mas ele não respondeu. Fiquei nervoso, mas felizmente quando estou nervoso, consigo disfarçar muito bem com bom humor cínico, que é um clássico de família em situações deste tipo. O carro andou e doía cada vez mais. Cada vez que meu cérebro relaxava , parecia que entendia mais o que aconteceu e a dor aumentava.

Cheguei ao hospital com dores lancinantes, mas tentando disfarçar. Pareceu muito melhor fingir que não era comigo e assumir uma atitude estóica entrecortada por alguns resmungos e gritos quando não dava pra segurar. Passei a morder um pano e hurrar disfarçadamente.

O médico veio, olhou minha perna e descobri que estava num hospital em Jundiaí especializado em queimados. Tentei ser simpático pensando em evitar que ele também vomitasse de nojo da minha perna como o outro, ou eu de nervoso e dor. Não estava pensando direito.

Foi muito rápido na minha cabeça, mas o que chamam “debridamento” é realmente indescritível, mesmo assim, eu vou tentar falar sabendo que você provavelmente você irá se insensibilizar. Basicamente consiste em cortar as partes de pele e carne morta, separando-a da viva, o que se descobriu em ato ao me cortar. Ao pedir delicadeza repetidas vezes neste procedimento e percebendo que estava sem anestesia, senti como se a enfermeira me tratasse como gado, não me aguentei e simplesmente fui indelicado e bati em sua mão dizendo que eu não era um animal e sentia dor.

Desculpem a frase, eu era vegetariano nesta época, acreditem e não pensei nisto, pensei como se eu fosse um boi sendo recortado, o que se lia na expressão em seu rosto.

Ela prestou mais atenção. E graças à ela, eu sempre lembrarei do verbo debridar, que associo à técnicas descobertas na inquisição de alta eficácia. Com o devido tempo, confessaria o que fosse.
Pouco depois vi passar o médico que pareceu simpático, mas o assunto me deixou irritado. Ele estava acompanhado de meus chefes e capatazes e estes perguntaram se eu não estaria drogado, pois parecia muito controlado e, estando naquela altura com as duas pernas enfaixadas, pensei no pior. Além de tudo inventariam algo contra mim.

Felizmente o médico foi honesto e apesar de preferir estar do lado dos capatazes, nada inventou em meu prontuário.

RECUPERAÇÃO E ATEÍSMO

A dor continuava rigorosamente, mas ao entrar na sala ao lado, tive uma visão que me deixou anestesiado, vi pessoas com faixas similares às minhas esperando, mas as faixas cobriam os rostos, e mesmo o corpo todo de uma pessoa. Pensei se não seriam todos acidentes de trabalho, como se nossas vidas, nossos sonhos, nossa beleza tivessem sido roubadas pelo trabalho.

Passei e entrei num quarto onde as pessoas vinham me visitar. Minha mãe que não me deixou jamais abandonar o trabalho para estudar, meu capataz e o gerente da planta que cinicamente tentaram armar contra mim há poucos segundos e meu pai com quem vivia brigando como um cão contra outro disputando espaço desde a adolescência.

Acompanhante de cada instante desde então, a dor se anunciava em cada instante que meu cérebro entendia o que aconteceu ao corpo. Nenhuma posição a evitava. Anestésicos me faziam pensar em outras coisas além da dor, mas ela não desaparecia, além de eu ter de comtemplar a tudo imóvel.

Fiquei sabendo que não foi uma queimadura de terceiro grau, o que sacrificaria para sempre meus movimentos, mas o que chamam de segundo grau profundo, isto é, os músculos estão lá, bem passados em algumas partes e os nervos estão lá também sem a sua companheira pele, derme e epiderme, assim como a gordura. Então o nervo dá sinais de dor que são quase insuportáveis, causam alucinações, palpitações e marcam constantemente a sua presença, pois deveria estar dentro e não fora.

Como toda esta meleca estava para fora, deveria tomar, além de codeína, doses enormes de antibióticos que poderia agravar a situação, pois estaria exposto por longo tempo devido ao tipo de tratamento que escolheram pra mim.

Decidiram por mim deixar a pele crescer lentamente de baixo para cima e quando estivesse presente ao menos a pele inferior, deveria aprender a esticá-la e colocar uma sobre-pele, uma cobertura que substituiria a pele, junto com o óleo artificial que simula o da pele. Com o tempo deveria forçar a perna a se exercitar e engrossar conforme a carne voltasse.

Tudo isto levaria meses e muita dor, toda ela, todo o tempo, sempre. Demorei para conseguir dormir um pouco mais e o sono demorava o tempo do efeito do anestésico.

Dia a dia, imobilizado em casa, devia umedecer a pele, desgrudar a gaze de onde deveria haver pele, e só restava aquela meleca e colocar uma nova. Dia sim, dia não uma enfermeira muito bonita, digo, meu tipo de mulher que não é de outros, algo entre a garota forte do Crumb e a gordelícia como aprendi em São Paulo.

Voltei a pensar em algo como a vida, sexo e estas coisas. Infelizmente, minha mãe me acompanhava, afinal, como ir até o hospital sozinho?

Era triste chorar ao lado de uma gata que me atraía e minha mãe, pois a dor arrancava lágrimas dos olhos, devo admitir. Nestes instantes parece que Deus se afasta dos homens. Quem sobrevive a isto com fé, bendito seja, eu não fui.Não passei incólume em nenhuma forma de religiosidade que já tive. Dor, humilhação, interdição social foram demais pra mim.

A RESSURREIÇÃO DA CARNE

Posteriormente percebi um traço, um olhar, como se ela demonstrasse – a enfeirmeira – desejo. Não acreditei, mas descobri depois que um amigo meu teve um caso com uma enfermeira deste mesmo hospital. Descrita a pessoa, era a sujeita, pensei.

Mas ele não passava o que passei, eu estava impossibilitado de amar, recebia telefonemas calorosos e conheci muitas garotas lindas...na cama, vendo meus amigos ficar com elas na cama do meu irmão ao lado.

Que tipo de sadismo era esse, eu nunca soube. Mas pararam de aparecer, até eu desaparecer da vida social.

No mais, passaram meses e muita dor, toda ela, todo o tempo, sempre. Demorei para conseguir dormir um pouco mais se o consegui.- fosfato de codeína, lhe sou grato, amém. Mais à frente percebi o crescimento da derme e, realmente, o sádico tratamento funcionava.

A perna direita preservou-se, mas a esquerda era o problema. Quando o tecido constituiu-se minimamente veio outra tarefa. O médico passou o aviso de que agora, quando a dor finalmente reduzira, pois entre os nervos e o mundo havia a pele, eu deveria esticar a perna forçadamente, caso contrário não conseguiria movê-la.

Assim começou o dolorosíssimo exercício que consistia em algo tão simples quanto pegar uma gaze entre as mãos, colocar a planta do pé esquerdo na base e puxar ao mesmo tempo em que se estica a perna. Pareceria simples, não fosse o fato da minha perna esquerda estar imobilizada há meses e o tecido não esticar assim naturalmente.

Deixava um clássico rolando do Buthole Surfers, Human Canonball muito alto e gritava sem constrangimento, repetidamente com medo, é claro, de que não pudesse voltar a andar. Num dia desses o tecido se rasgou levemente produzindo a dor de um corte, o que era infinitamente menor do que eu sentia, as coisas regrediriam um pouco mas voltariam a funcionar.

Lembro de ir a shows sem poder beber e participar de festas no período de recuperação, a dor era indescritível, pois o tecido esticava, mesmo de muleta, de modo infernal. Mesmo descrente clamava por piedade a qualquer entidade responsável pela administração do Universo, mas como qualquer pedido ao serviço de atendimento ao consumidor, não fui atendido e ficava esperando na linha.

DE VOLTA À CALDERARIA

Voltei à empresa para uma pequena piadinha de humor negro poucos meses depois, isto é, me mandaram fazer um curso sobre Caldeiras no SENAI. Aquilo seria o fim da picada, não fosse o fato de perceber que a Fábrica era outra no meu retorno, isto é, trocaram todos os equipamentos, não havia mais pedaços improvisados de borracha prendendo dutos de vapor, mas válvulas de aço inox. Parecia outro lugar.

Na curso de calderaria conheci outros caldereiros, gente que trabalhava com aquela máquina de cozinhar gente, de onde soube diversas receitas. Uma delas, na gigantesca caldeira que queima restos sólidos da Duratex.

Ela era uma caldeira gigante, admirável construção da metalurgia da década de 20 e 30 alemã. A têmpera dos metais permitia uma dilatação linear específica que transmitia o movimento até o alimentador de calor. O mesmo mecanismo que hoje sofisticados indicadores eletrônicos de calor tentam substituir com falhas, era grosseiro e mais simples, diria, "física de colégio", mas funcional num período em que tal precisão se dava pela metalurgia.

Mas os metais não escapam ao desgaste e aquele não seria diferente, um dia quando o pré tratamento de água num gigantesco tanque de água fervente se rompeu, a água com substâncias alcalinas diversas caiu sobre o seu tratador de água, algo próximo do que eu mesmo fazia só que em escalas descomunais. O homem derreteu inteiro na água fervente.

A partir daí, nada melhor eu poderia esperar da indústria química senão sobreviver à ela.

2 comentários:

zecalixto disse...

sofrimento...fico sem palavras.
a narração soa realista. o narrador que se coloca em duvida,"como narrar esta dor?' bem interessante. a questão da religião podia ser mais bem elaborada, extrema unção, o milagre da vaporização, sei la.

A dor do trabalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.