quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

ERRATAS E COMENTÁRIOS AOS LEITORES

1. Debridar, Desbridar

A palavra que achei ser debridar, que lembrava de orelhada, pode ser escrita também desbridar, a mesma palavra para a amputação de membros mortos.

2. Reapresentação do Trabalho

Alguns perguntaram se eu poderia não carregar tanto nas tintas e na descrição, outros acharam que fui pouco descritivo e segurei a fala. Uns notaram um tom auto-complacente, enquanto para outros observaram que este seria o ponto forte, o da autocrítica.

Coloco o seguinte, o tom é o da fala de alguém que hoje tem curso superior lembrando de mim, tempos atrás, como operário, vencido dolorosamente pela passividade daquela situação. O que ele fez doeu e é parte da minha memória, mas somos muito diferentes, tentarei ajustar a fala ao tempo que nos distancia. A reflexão é de hoje vindo daquele tempo as ruínas de uma época triste e dolorida que me carregou de imagens rancorosas e mudas, tento falar sobre isso.

Adiantando já uma parte do fim, a história é a de que hoje me sinto mais des-fetichizado (e desencantado) não conseguindo esquecer o quanto de trabalho humano desumanizado se esconde sob cada objeto que nos cerca, pois, enquanto mecadoria, ela é produzida por alguém e pressupõe uma quantidade inimaginável de sofrimento medida em tempo morto. No entanto, esta sensação se esvai no fato de me constatar muito mais alienado pelo fato de não mais criar objetos que, ainda que fragmentados pela divisão do trabalho, notando o fato de que neste processo, não se vê um objeto completo, mas partes dele, além de não possuí-los. Hoje constato que sequer me ponho materialmente no processo, vendo apenas o final, a mercadoria.

Pior é a sensação incômoda de traição de classe (ou de categoria?) ao sair daquele meio e abandonar aqueles que ficaram no sofrimento, ou teria eu dado uma finalidade a posteriori ao fato de ter sido um dos demitidos na grande reestruturação produtiva fabril que demitiu metade dos trabalhadores da fábrica em que trabalhei na época, continuando seu processo através da desregulação dos contratos de trabalho e do desemparo em relação às condições físicas dos trabalhadores?

É estranho falar sobre isto e notar que nada vi sobre o sofrimento ou mesmo a condição do trabalhador fabril excetuando pesquisadores como Tragtenberg, João Bernardo ou então o relato de Simone Weil na Condição Operária. Outro detalhe é notar serem só os socialistas heterodoxos a tratarem do tema, o que se explica em parte por Lênin que coloca o taylorismo como salvação dos problemas da produção planificada soviética (mesmo após ter escrito cartas contra este método tirânico antes da revolução), ou Gramsci que, ao citar Taylor, o vê com olhos parecidos com os de Engels no texto sobre o autoritarismo, onde a coerção do homem para a repetição maquinal contra os impulsos motores animalescos é considerado um progresso parecido ao da locomotiva em relação à carroça.

"Mas todo novo modo de viver, no período em que se impõe a luta contra o velho, não foi sempre, durante um certo tempo, o resultado de uma coerção mecânica? Até mesmo os instintos que hoje devem ser superados como ainda demasiadamente “animalescos” foram, na realidade, um notável progresso em relação aos anteriores, ainda mais primitivos: quem poderia descrever o “custo”, em vidas humanas e em dolorosas repressões dos instintos, da passagem do nomadismo à vida sedentária e agrícola (caderno 22, § 10)?"

Nenhum destes, exceto Simone Weil (que relatou sua experiência como fresadora da Renault em "A Condição Operária"), conheceu os extertores do trabalho, mesmo Gramsci, um dos únicos marxistas pobres da história, que conhecia somente sua ferramenta de trabalho, que era a mesma arma que Lukacs portava, a caneta. Simone Weil entendeu a profundidade de um dos piores aspectos subjetivos do trabalho fabril, o fato de que sofrimento causado docifica e não causa revolta. O trabalho e sua tortura emudecem o homem dentro da fábrica, enquanto multidões desamparadas e abandonadas à própria sorte querem entrar desesperadamente em busca de regularidade e sustento.


O sofrimento não causa a revolta e nossas conclusões talvez sejam externas à condição do trabalhador, como ao lembrarmos solitariamente das possibilidades históricas de ação, revolta e luta coletiva pela emancipação política que não são lembradas pelos que sofrem, e onde soa fantasia o que chega aos seus ouvidos, como bem vêem os nossos colegas que se tornam professores. Uma fantasia onde quem trabalha passa a agir como quem domina, como o violento, patrão, soldado ou policial, ou aquele que têm os códigos da violência fora da lei, dentro do cárcere ou fora dele na luta fatricida com a qual tantos convivem. As revoltas quando aparecem soam temporárias e com o tom de ressentimento aparece contra aquele que conta, esta história, em geral, um intelectual.

No entanto, apesar do que dizem os que narram o desmonte do trabalho, a fábrica continua lá e o atestam as mercadorias que continuam sendo produzidas tendo cada uma sua história macabra, ainda que se apresentem como se fossem saídas do nada e como se suas mercadorias se trocassem entre si. A desregulamentação do trabalho não trouxe menos trabalhos e fábricas com robôs aceleraram o cotidiano do trabalhador trazendo o seu tempo impossível de sofrimento e tragédia maquinal ao objeto de carne alugada que em movimentos repetitivos, velozes e eficazes deve acompanhá-la.

Se há dúvida a respeito de como sofrem mais que antes os trabalhadores das fábricas, vejam este link sobre acidentes de trabalho, onde vemos como hoje poucos trabalhadores de cada vez devem fazer o trabalho de vários outros que agora esperam no portão pela sua vez de voltarem a trabalhar (que pode ou não chegar). Para eles aparece a imagem de que é melhor correr o risco de morrer ali dentro do que lá fora, nesta vida entre a legalidade e a ilegalidade do trabalho informal sem saber que lá dentro os turnos esticados, a falta de segurança e a quantidade de trabalho por pessoa fazem com que se tornem ambas formas de trabalho irregular. Ao menos lá dentro serão socialmente reconhecidos como trabalhadores e não como bandidos, vagabundos dependentes de parentes aposentados num convívio forçado ou marginais, sem perceberem que não há margem.

Há ainda a representação artística. Porquê a fábrica repulsa à arte? Farocki colocou um problema parecido em Arbeiter Verlassen die Fabrik (Trabalhadores saindo da Fábrica, propositalmente homônimo ao filme dos irmãos Lumière), ao falar sobre as pouquíssimas representações no cinema do trabalhador na fábrica, sendo um deles, o único que coloca a fábrica como algo positivo, um filme nazista. Poderíamos lembrar de Schastye (Felicidades) de A. I. Medvedkin, apologia da produção em geral associada à vida não alienada ... num musical estalinista. Bom, tem também o Dançando no escuro.

Na literatura, em geral, o espaço de destruição da subjetividade escolhido é o trabalho de serviços, como o da doméstica, Fräulein Elza ou Macabéia, ou a do arrimo. Outros únicos grandes relatos deste gênero, como o livro Mano de Obra de Diamela Eltit, trata da circulação em um supermercado e da luta fratricida num Chile pós-Pinochet em que a solidariedade entre trabalhadores definitivamente se esvaiu em sombras e violência mútua.

A família impera sobre o trabalho em nossa literatura e mesmo fora do registro do testemunho de campos de concentração como Primo Levi em É isto um homem? ou do Arquipélago Gulag de Alexander Soljenítsin, não temos um relato literário verossímil sobre a fábrica em nenhuma parte da literatura mundial. Como foi que a base material do mundo foi constituída através de braços humanos sem deixar testemunha? Será que o ser humano que passa por seu interior é tão subjugado que a memória se apaga e se espalha sem guardar senão reminiscências? A fábrica, parte da grande corporação capitalista, conseguiu passar sem deixar vestígios na subjetividade humana escondendo suas entranhas? Senão vejamos.

Mário Pedrosa dizia que se o lugar onde é produzida a base material de nossa vida é o espaço do maior autoritarismo existente, criando uma forma política de poder totalitário absolutamente regulado, porquê achamos que vivemos numa democracia, ou melhor, seria a democracia liberal a forma de governo onde quem manda é a grande empresa capitalista, como bem pontuou João Bernardo em "Democracia Totalitária" e, mais ainda, será que a negação da representação da produção é um destes sinais?

3 REESCREVENDO SOBRE A DOR DA QUEIMADURA COM VAPOR

Como reclamaram sobre a descrição do momento da queimadura, tentarei de outra forma, como uma versão infame de Julio César quando falava de si:

Era uma tarde de sol quando D. sentiu uma pontada de dor aguda e indefinida nas pernas. Sentiu umidade e calor como aquele que as chamas causam no exato momento em que sua mãe lavava roupas e seu pai dava uma carona a seu avô no fusca de cor indefinível entre o bege e o alaranjado para uma outra cidade que nunca soube qual era. Neste mesmo momento João saciava sua sede bebendo água gelada no escritório de seu trabalho em Campinas, enquanto Juliano caminhava pelo centro da cidade pensando na aquisição de um pedal de efeito para sua bela guitarra, e Marcelo vivia as aventuras de seu primeiro ano de graduação em Marília, filósofo, por certo, do excesso que, entre um amor e outro, decidia-se sempre pelos dois. Já Sandro vendia seu décimo quarto automóvel voltando para anotar os resultados em sua mesa. Não sabia ele, mas em apenas alguns meses conheceria Thaís que dormia em sua cama depois de uma noite difícil de trabalho. Dormir, para ela, queria dizer preservar um dos seus instrumentos de trabalho sobre o outro ainda em uso. Com o corpo e a cama lhe era possibilitado aventurar-se entre drogas e festas incólume em sua dupla vida, ela ainda era desconhecida de Jennifer que fazia seu último ano de colegial na mesma escola que Fernando, sendo que, ambos, iriam mais tarde à piscina na casa de Fernando. Neste momento, Fernando M, outro rapaz, estudava em casa para a faculdade de Jornalismo em São Paulo. Ele editava fotos no computador, que se apoiava sentado em sua escrivaninha.


Estes móveis, entre camas e escrivaninhas, foram comprados em lojas abastecidas por produtores de móveis, para tanto, estava pressuposta para todos, sem saberem, as leis da produção em escala, tornando baixos seus valores em formas eficazes e industrialmente estabelecidas, resultando, para este caso específico, em serem constituídos a partir de aglomerados e compensados, isto é, eram feitos a partir de pedaços de madeira colados entre si.


À parte o processo da madeira, a resina que os colava era composta de fenol e formol, cujo processo dividido em partes era realizado em várias indústrias. Entre elas se estabelece a mais estrita concorrência darwiniana, produzindo o tal espécime sob os mais baixos custos, cortando, para tanto, os gastos supérfluos. Um destes lugares cortou, na mais estrita observação à lei da vantagem marginal, os gastos com segurança para os trabalhadores nas conexões entre dutos de vapor.


Deste modo, observamos que, se por um lado, não era estritamente necessário que D. queimasse a perna naquele exato momento, era inevitavelmente pressuposto que todos estivessem onde estavam para que isto acontecesse como aconteceu e que, se pudessem optar, sabendo disto, ninguém gostaria de estar no lugar de D. em meio a este processo.

Seria isto, mas ainda não gostei...

Um comentário:

Unknown disse...

Douglas,
Gostei muito do post. Bem escrito etc., o que desmente, pelo menos aqui, sua queixa de escrever textos confusos.
Interessante também o que diz sobre a Literatura não tratar densamente o mundo fabril, o operário. Na verdade existe alguma coisa, mas nada de relevante. Acho que somente no século XVIII, e um pouco após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, fez-se literatura preocupada com os oprimidos. NO caso do XVIII, engajada com a classe que não estava no poder: a burguesia. Hoje, em especial a forma romance (forma fundamentalmente burguesa) é praticada por uma burguesia liberal, e tem sempre no horizonte o consumo, visto que o escritor quer sobreviver dela, que ser um homem. Sendo o consumidor de literatura o próprio burguês, ou ela é feita para um seita (em geral a que se pretende arte) onde os pares irão ler; ou se escreve pela fama etc. Num cenário assim quem vai dar voz ao trabalhador, este que vc cita no texto? E em que medida nós (intelectuais) podemos dar uma consciência para esse sujeito?
É isso,
Ricardo.
PS.: aguardo seu próximo post.